é enquanto deito que me vejo cercado. por todos os flancos elas chegam: as visões de um futuro que se dissipou. não como a naftalina que sublima nos momentos que esquecemos dela, ou como o gelo que derrete lentamente num copo até o ponto que queremos apenas mastigar e destruir o mesmo. futuros que se dissiparam como uma cinza de incenso, que poucos segundos antes pareciam sólidas, flutuando como por magia, e uma lufada de vento daqueles que mal sentimos as levam embora e nada sobra para que ao menos tivéssemos a sensação de que podemos guardar, recombinar, juntar os caquinhos minúsculos e remontar de alguma forma o que ela havia sido. mas a lufada de vento também veio como tempestade, abrindo portas, janelas, carregando qualquer coisa menos fixa em seu chão, em seu espaço, arrancando tudo que não tivesse ou fosse raiz, desfolhando todas as folhas de seu próprio outono.
e enquanto me deito eu estou ali, uma ilha, cercado.
uma cama de igual tamanho, mas quilômetros maior. o mesmo travesseiro, numa fronha que não reconheço. novas paredes, tetos, a própria atmosfera como se nova. mas eu estou ali, uma ilha. não como uma daquelas inóspitas, meus mapas já foram quase todos esquadrinhados e os tesouros que lá marcavam já foram há muito desenterrados, e os que permanecem sob todas as camadas de entulho terra solo areia e pedra já não sei se valem a procura. se são ouro-de-tolo ou dobrões e escudos pouco importa, a riqueza dos mil-réis só com o tempo se vê. mas os mapas marcam com um x vários pontos que o dia de hoje, e a noite quando me deito, não me dão o impulso de pegar o bornal de explorador e pular de súbito com o ímpeto de sim, vamos agora desenterrar você. e como todo mapa é ficção, existem as áreas cinzentas que ainda não querem contar nenhuma história, mas lá estão esperando serem desenhadas. e as próprias áreas claras e definidas, desenhadas em cada entranha de costa, enseada, elevação, projeção, longitude e latitude, também sei que fui eu quem desenhou e sei que ali pode dizer a verdade ou pode fazer qualquer navegante se perder pra sempre na falsidade consciente ou não de quem pensou estar definindo um mundo interno, mapeando cada caminho que se fez possível até aquele momento. mas o gps é uma maravilha tecnológica que não se transpõe bem pro mundo interno da metáfora, onde todos nós estamos sempre irremediavelmente perdidos.
e enquanto eu divago sobre me encontrar, eis que me perco de novo e relembro uma memória que não vai mais existir. niqui somos apenas capazes de viver o presente, estamos fatalmente presos nesse tempo, porém recebemos visitas. o passado é o conviva mais recorrente, pois ele sempre surge trazendo as dádivas de nosso hipocampo, nos amarrando no enlameamento da memória, nos fazendo rir de graças perdidas, arrancando a lágrima que nunca esteve lá mas que veio tão fácil assim. mas o futuro também, por mais que se diga que o futuro ainda não existe - o que é verdade - ele também nos visita através do desejo, do sonho, do plano, da vontade, do costume, do acostumar do tempo que achamos que não vai mudar. o futuro nos visita pra nos mostrar onde podemos chegar, presente por presente, pulando e fluindo no balé do tempo, até chegar lá. seja lá onde for, muitas vezes diferente do que se imaginava antes, mas lá.
mas esse futuro se dissipou, numa tempestade que levou suas cinzas.
e o que sobrou foram várias esquinas. e a sensação de que uma hora alguém vai virar a esquina lá na frente e voltar ao meu campo de visão. a sensação de que existe algo ali - à espreita, ou esperando, ou apenas ali, só dobrar a esquina que está lá, é só chegar. a nítida noção que da cama, virando a esquina pra cozinha, a pessoa está lá, fazendo qualquer coisa no presente dela, mas que logo volta pro seu futuro. deitado numa cama cercado de esquinas e a pressão no peito dizendo que está logo ali, é só dobrar a esquina. logo surge, fica olhando. é só levantar e cruzar o limiar da percepção que toda esquina representa, e você vai ver. o peito dizendo que está quase ali, bem perto, quase dá pra ouvir o respirar, o arrastar de pés, os membros superiores fazendo qualquer coisa e deslocando o vento à sua volta.
mas não existem esquinas. o quarto é um quadrado que de um lado dá pra uma nova rua e pro outro apenas um corredor escuro até a porta que prende o aqui dentro e o lá, fora.
e como alguém que já comeu qualquer pimenta sabe o que esperar da mesma, às vezes a gente sabe o que esperar da dor. a gente sabe que a capsaicina não queima de verdade, apenas engana suas terminações nervosas. nenhum dano físico real há de surgir da pimenta, apenas a dor temporária de seu corpo entendendo o mundo externo como o mundo externo quer ser entendido. e o fogo na boca no peito nas vísceras não é fogo, é apenas um fruto sendo deglutido.
não é fogo, não é dor. é apenas um fruto sendo deglutido. apenas um fruto sendo digerido.