sexta-feira, dezembro 23, 2022

esquina

 é enquanto deito que me vejo cercado. por todos os flancos elas chegam: as visões de um futuro que se dissipou. não como a naftalina que sublima nos momentos que esquecemos dela, ou como o gelo que derrete lentamente num copo até o ponto que queremos apenas mastigar e destruir o mesmo. futuros que se dissiparam como uma cinza de incenso, que poucos segundos antes pareciam sólidas, flutuando como por magia, e uma lufada de vento daqueles que mal sentimos as levam embora e nada sobra para que ao menos tivéssemos a sensação de que podemos guardar, recombinar, juntar os caquinhos minúsculos e remontar de alguma forma o que ela havia sido. mas a lufada de vento também veio como tempestade, abrindo portas, janelas, carregando qualquer coisa menos fixa em seu chão, em seu espaço, arrancando tudo que não tivesse ou fosse raiz, desfolhando todas as folhas de seu próprio outono. 


e enquanto me deito eu estou ali, uma ilha, cercado. 


uma cama de igual tamanho, mas quilômetros maior. o mesmo travesseiro, numa fronha que não reconheço. novas paredes, tetos, a própria atmosfera como se nova. mas eu estou ali, uma ilha. não como uma daquelas inóspitas, meus mapas já foram quase todos esquadrinhados e os tesouros que lá marcavam já foram há muito desenterrados, e os que permanecem sob todas as camadas de entulho terra solo areia e pedra já não sei se valem a procura. se são ouro-de-tolo ou dobrões e escudos pouco importa, a riqueza dos mil-réis só com o tempo se vê. mas os mapas marcam com um x vários pontos que o dia de hoje, e a noite quando me deito, não me dão o impulso de pegar o bornal de explorador e pular de súbito com o ímpeto de sim, vamos agora desenterrar você. e como todo mapa é ficção, existem as áreas cinzentas que ainda não querem contar nenhuma história, mas lá estão esperando serem desenhadas. e as próprias áreas claras e definidas, desenhadas em cada entranha de costa, enseada, elevação, projeção, longitude e latitude, também sei que fui eu quem desenhou e sei que ali pode dizer a verdade ou pode fazer qualquer navegante se perder pra sempre na falsidade consciente ou não de quem pensou estar definindo um mundo interno, mapeando cada caminho que se fez possível até aquele momento. mas o gps é uma maravilha tecnológica que não se transpõe bem pro mundo interno da metáfora, onde todos nós estamos sempre irremediavelmente perdidos. 


e enquanto eu divago sobre me encontrar, eis que me perco de novo e relembro uma memória que não vai mais existir. niqui somos apenas capazes de viver o presente, estamos fatalmente presos nesse tempo, porém recebemos visitas. o passado é o conviva mais recorrente, pois ele sempre surge trazendo as dádivas de nosso hipocampo, nos amarrando no enlameamento da memória, nos fazendo rir de graças perdidas, arrancando a lágrima que nunca esteve lá mas que veio tão fácil assim. mas o futuro também,  por mais que se diga que o futuro ainda não existe - o que é verdade - ele também nos visita através do desejo, do sonho, do plano, da vontade, do costume, do acostumar do tempo que achamos que não vai mudar. o futuro nos visita pra nos mostrar onde podemos chegar, presente por presente, pulando e fluindo no balé do tempo, até chegar lá. seja lá onde for, muitas vezes diferente do que se imaginava antes, mas lá. 


mas esse futuro se dissipou, numa tempestade que levou suas cinzas.


e o que sobrou foram várias esquinas. e a sensação de que uma hora alguém vai virar a esquina lá na frente e voltar ao meu campo de visão. a sensação de que existe algo ali - à espreita, ou esperando, ou apenas ali, só dobrar a esquina que está lá, é só chegar. a nítida noção que da cama, virando a esquina pra cozinha, a pessoa está lá, fazendo qualquer coisa no presente dela, mas que logo volta pro seu futuro. deitado numa cama cercado de esquinas e a pressão no peito dizendo que está logo ali, é só dobrar a esquina. logo surge, fica olhando. é só levantar e cruzar o limiar da percepção que toda esquina representa, e você vai ver. o peito dizendo que está quase ali, bem perto, quase dá pra ouvir o respirar, o arrastar de pés, os membros superiores fazendo qualquer coisa e deslocando o vento à sua volta. 


mas não existem esquinas. o quarto é um quadrado que de um lado dá pra uma nova rua e pro outro apenas um corredor escuro até a porta que prende o aqui dentro e o lá, fora. 


e como alguém que já comeu qualquer pimenta sabe o que esperar da mesma, às vezes a gente sabe o que esperar da dor. a gente sabe que a capsaicina não queima de verdade, apenas engana suas terminações nervosas. nenhum dano físico real há de surgir da pimenta, apenas a dor temporária de seu corpo entendendo o mundo externo como o mundo externo quer ser entendido. e o fogo na boca no peito nas vísceras não é fogo, é apenas um fruto sendo deglutido. 


não é fogo, não é dor. é apenas um fruto sendo deglutido. apenas um fruto sendo digerido.


quarta-feira, setembro 09, 2020

ao pó retornarás

quando eu fiz psicologia e estava começando a atender eu tive que procurar terapia, não só para lidar com o que eu já vinha lidando especialmente naquela época, mas a partir dali eu tinha responsabilidade com pacientes e minhas questões que já atrapalhavam minha vida não podiam atrapalhar a dos outros, minhas interpretações não podiam ser influenciadas pelas minhas problemáticas e enfim eu tentei. fui em várias terapias sem muito sucesso, mas na última terapeuta ela já na segunda ou terceira sessão me puxou esse fio da minha dificuldade em ser atendido, em falar e aceitar ser ajudado, e conversamos sobre modos de se expressar. na época eu já escrevia bastante, e jogava tudo que se passava por mim em uns microcontos cheios de metáforas e ficções absurdas mas cheias de um sentido que pra mim era uma coisa, mas que eu mascarava com tantas palavras conseguisse. eu acho que era um jeito de botar pra fora as coisas mas ainda me sentir protegido, e encontrar acolhimento não nas minhas questões, mas na forma como aqueles textos imbricados iam reverberar em outras pessoas, por mais que os outros encontrassem tantos outros sentidos diferentes dos que eu havia escondido ali. isso talvez fosse parte do jogo até. 

antes disso eu fui um monte de coisa, mas primeiramente eu fui criança. e diferente de um adulto, uma criança ainda não é um amontoado de escombros mal ajambrados. uma criança ainda não é uma coleção de ruínas, mas é ali na criança que as primeiras rachaduras vão se somando no alicerce de destroços que nos tornamos. a vida simplesmente acontece, e muito pode ser explicado depois, mas muito é apenas a vida acontecendo. chegar à vida adulta pode ser um navegar remado com empenho e direção, mas as vezes é só maré levando e vento soprando sem você entender muito bem pra onde vai. 

e agora eu falo de minha avó, joelina. se eu acreditasse em alguma coisa, eu diria que hoje ela fez sua passagem. mas por mais que eu possa dizer essa palavra aqui e ali, é mais uma convenção do que algo que eu acredite mesmo. não houve passagem. ela estava viva, não está mais. amanhã será cremada e todos os átomos que compõem seu corpo voltarão a fazer parte de algo inanimado, até voltar a fazer parte de algo animado eventualmente. e eternamente esses átomos irão seguir seu caminho: surgidos no coração de uma estrela, eventualmente pararam em minha avó. e agora seguem seu rumo, como vêm seguindo há bilhões e bilhões e bilhões de anos. 

a vida de joelina foi longa, e dos seus 95 anos foram vários escombros acumulados, como todo mundo que quase chega ao centenário deve ter. turrona, forte, temperamental, teve que criar 3 filhos depois de ser largada pelo marido, meu avô. e teve sua parcela de vitórias e derrotas na vida adulta. uma pessoa completa com todas as histórias e profundidades possíveis, e que eu jamais seria capaz de esquadrinhar nem se eu quisesse. uma pessoa completa em seus motivos, e completa em suas razões e desrazões.

infelizmente, em um ponto da história as nossas vidas seguiram entroncamentos diferentes. a vida simplesmente acontece. e muito poderia até ser explicado agora, mas em sua maior parte foi o que já disse três parágrafos acima: foi apenas a vida acontecendo. de nada adiantaria agora querer se perguntar onde remamos longe um do outro, e onde foi só o vento e a maré afastando por tantas e tantas vicissitudes que a vida insiste em ter. 

mas antes disso tudo eu fui um monte de coisa, mas primeiramente eu fui criança. e ela estava lá. e estava lá antes disso, quando meu pai antes de mim também foi criança. um fio que une pelo sangue e que acumula tantas e tantas histórias, três gerações de vida acontecendo. macrocontos, romances, novelas e folhetins de histórias e mais histórias metafóricas e literais, cheias de sentidos e palavras mascaradas e descaradas. vidas imbricadas que reverberaram em mim. agora. e tudo que levou à esse momento agora não vai fazer sentido, mas eu precisava expressar - não tão escondido agora. acho que é também parte do jogo. 

por mais que estivéssemos distantes, hoje se foi não só ela, mas uma parte gigantesca de minhas histórias. histórias que eu não ouvi. histórias que não deu tempo de saber. histórias que aconteceram comigo antes de eu ser escombro. histórias que aconteceram antes de eu sequer existir. parte de minha história se foi pra sempre, possibilidades se fecharam pra sempre e só me sobrou isso aqui e o sentimento que agora aparece é essa falta, essa cessação. talvez um pouquinho daquela culpa de sobrevivente, mas de um jeito diferente. uma parte de mim se foi e infelizmente a vida aconteceu de uma maneira que agora pesa um pouco mais do que anteontem, que talvez eu nem tenha pensado nela. tem hora de sentir, e é agora. depois vai ter a hora de racionalizar, e ver que não adianta muito encafifar nessas coisas. foi o que a vida apresentou. a vida sempre acontece. é parte do jogo. 

mas bem, eu precisava me expressar: adeus vó.


quarta-feira, outubro 26, 2016

pritt

parece um visgo. uma segunda pele de cola permanente. os elétrons de sua pele querendo se ligar à cama. forças eletromagnéticas inexistentes mas que atuam no seu corpo inteiro. olha só que mistério. um corpo-imã desenhando de forma invisível aqueles rastros em círculo em volta de seus polos. grudado. parece um visgo.

a cama já criou uma ranhura em seu formato e como uma ficha num fliperama desligado você está lá dentro. um slot. um molde. seu corpo-imã não tem porque lutar contra, aquele é seu espaço. e você não quer lutar contra as forças mais poderosas da natureza. nossa física conta quatro forças que explicam e unem tudo no universo e de todas elas não é nem a gravidade a mais forte dentro da escala do seu quarto, mas até ela acelera seu corpo sempre pra baixo a 9 m/s². pra dentro da cama. pro molde.

parece que tudo está suspenso. e não no sentido de parado, mas no sentido de em suspensão. um atoleiro. areia movediça. os grânulos de areia em suspensão num colóide grosso que te engole como nos filmes, mesmo você sabendo que ninguém morre engolido por areia movediça. o símbolo é o que importa. você afundando pouco a pouco. os braços pra cima sendo seu último sinal pro mundo ei eu tou aqui alguém me tira dessa porcaria de tropo antiquado de filme. o carro atolado na duna que cada força que faz pra sair, cada pisada forte no acelerador, mais e mais se engancha nas malícias da areia fina e inocente.

parece um visgo. não aquele arbustinho fofo, mas aquele visgo que sua vó fala quando passa a mão na sua testa e te enxota pra ir pro banho pra tirar a nhaca. visgo e nhaca, palavras que se afundaram também na areia movediça da história e vão aos poucos morrendo com seus falantes que talvez pouco se esforçaram pra guardar na oralidade essas graças, ou apenas vão aos poucos morrendo porque há de ser assim com tudo um dia. palavras que também se afossam no fundo do poço do que já fomos, e que pode ou não virar combustível fóssil para queimarmos em nossos neologismos ou apropriações de palavras estranhas. nhaca, visgo, visguento.

o tempo é visguento. e como o nome acusa, gruda na pele como cola permanente. o corpo-imã que se arrasta no tempo levando grudado no corpo magnetizado todo atoleiro que você já se meteu. e por mais que alguém diga que ele na real nem existe, vai lá explicar pra quem já nada há muito na viscosidade do tempo que aquilo é só uma percepção limitada por nossa cognitividade. foda-se, meu amigo. o tempo existe e gruda na gente como a mão da vó na nossa testa. essa mão que o próprio tempo há de engolir no buraco da inexistência, mas cujo grude na sua testa pra sempre vai colar em sua memória.

e vai lá querer deixar tudo em palavras lógicas e reproduzíveis e procedimentais e sistemáticas e controladas e experimentais e o que quer que seja. no fim das contas, sobra você, o visgo do tempo, o quarto, a cama, a ranhura. as quatro forças que a física explica unindo seus núcleos,cindindo suas partículas, carregando eletricidade e te fazendo deformar o espaçotempo e afundar na cama a 9 m/s².

mas vai tentar explicar, vai.

segunda-feira, janeiro 04, 2016

reisen

o retorno é sempre um tour de force fracassado. a volta e a força. força e forca forçando sem o vigor físico que já não tenho, para arrancar do vigor mental que finjo ter o esforço excepcional que pfff nunca vou conseguir. voltar lá é sempre falhar miseravelmente sem nem tentar, aí sim é uma proeza.

e as promessas que fiz para mim mesmo, em segredo e modéstia, são lá que são testadas e vejo que por mais que corte o carboidrato da dieta de sapos que engulo, aquele pneuzinho só aumenta e aumenta e pesa cada vez mais na balança das coisas que ainda importam - mas que cada vez menos eu questiono se deveriam importar. as promessas falham e se acumulam como a pilha de livros que já desisti de atulhar há tempos, mas que ainda assoma alta e sem prognóstico positivo ou aquela nesguinha de esperança que o paciente alimenta com um sorriso lívido de que quem sabe um dia eu tico um por um e adeus voltemos às compras voltemos à pilha.

o retorno hoje já é ida, e a vinda sim é o verdadeiro retorno. qual realidade agora que me representa? quem sou hoje se não um fantasma do presente, assombrado pelo beta test do fantasma do passado, evoluindo pra um fantasma v2, v3, v4, v5.1.45-a e que nunca se forma, nunca se fecha e nunca nem sabe ou lembra o que é de verdade. um fantasma feito de miasma diluído no éter de uma nebulosa de sei lá. o retorno a ida a volta o ser o estar tudo confunde e se mistura num caldo ralo de eu, que não engrossa com toda farinha de tanta coisa que há no mundo.um go horse cego numa linguagem que sabe lá quem é que domina.

e talvez seja não o ato que me circunscreva, mas o cochilo. a falha. a negligência. talvez eu seja o que eu estou precisando ser. o que estou faltando ser. o que já foi dado a dica tantas vezes e bem, já tá mais do que na cara. eu talvez seja tudo isso que eu nunca consegui ser. e talvez eu seja também a cobrança das coisas que eu não consigo entregar. e talvez eu seja também a culpa os tropeços torções repuxes e os ais e uis. se não trilho um caminho, pelo menos manco um rastro qualquer. talvez eu precise esquecer mais o que existe e focar no vazio. o caosmo e a maiêutica de um big bang pequeno e silencioso.

pode não ser nada também. pode ser só aquela auto-comiseração safada e pedante de quem hesita demais. pode ser só qualquer sistema de opressão falando por mim. patriarcado. judaico-cristianismo. windows. storytelling. d&d. pode ser só a falta de preocupações reais. pode ser o mal desse século: a pura falta de uma escabiose e o seu prurido, de mãos dadas e nomes bonitos, pra esconder o real sentido de reclamar de barriga cheia.

o retorno é sempre foda, mas não tem como escapar. pode resumir na lápide.