sábado, novembro 30, 2013

quid est

olha a placa, é sua rua. estranha porque por milisegundos não havia reconhecido aquele lugar. foi pouco tempo. talvez o asfalto novo da avenida principal que a cruza - quando foi que colocaram isso e nem notei? - mas era sua rua e dobrava a esquina para alcançar o prédio. sua rua. notou que no caminho o livro o ocupara e o consumira. notou que naqueles milisegundos de estranhamento, o caminho que levara pra chegar até sua rua não haviam sido os 20 minutos de caminhada mais os 20 minutos de ônibus - mais ou menos por aí - e sentiu naquele microtempo que o caminho tinha levado sua vida inteira. trinta anos pra chegar até ali, naquela esquina. naquela placa da sua rua. sua rua. pensava que no rio tinha uma rua de mesmo nome, mas de alma completamente diferente. pensou nas ruas como entidades vivas. biofilia. um tipo estranho de pareidolia astral.

sua rua. pensou enquanto descia - preciso escrever - e lembrou da escrita como algo de duas naturezas. escrevia desde cedo, desde quando não precisava escrever. mas Escrevia também. e Escrevia há mais ou menos onze anos no mesmo espaço que agora pensava - onze anos e três meses e nada saiu do lugar - e conjecturou por que escrevia. pra quem. quem ainda leria aquelas linhas. pensou na escrita e na Escrita. pensou na sua letra que hoje mesmo haviam questionado como conseguia entender - eu consigo ué - e lembrou de quando começou a Escrever e porque. pensava no espaço em branco que se abria em tantas possibilidades, mas que sempre se apresentava quando ele só via uma delas. pensou no porquê. pensou numa metáfora no elevador - o que há dentro precisa ocupar aquele espaço em branco, preciso ser o espaço em branco - e custava a entender qualquer razão pra isso. terapia. desova. expurgo. lembrou das palavras lembrou da antiga terapeuta que dizia que ele havia se encontrado em alguma coisa - na verdade não, é só um passatempo - não é só um passatempo. Escrevia. razão não sabe se existiria um dia, mas sabia que teria muito tempo pra encontra-la. onze anos, três meses e ainda nada. nenhum encontro. um tipo estranho de deus ex machina que nunca viria.

Escrevia. e lembrava dos rumos que havia tomado. uns certos, a maior parte errados, alguns indiferentes mas que de forma intrínseca transformavam tudo pois cada curva virada mudaria os rumos de qualquer coisa que não tinha forma, jamais teria, jamais haveria de se encontrar e isso o condenaria ou o amaldiçoaria por algum motivo obscuro. e pensou nas maldições e assombrações e lembrou do passado que o perseguia ele querendo ou não. e de todos os outros que ainda insistiam que ele era assombrado por fantasmas que para ele não eram nada disso. como mães. como sua mãe que ainda pensava que ele gostava de tal e tal coisa. e tinha certeza dos seus medos de infância como atuais. e que se surpreendia com qualquer mudança que nem nova mais era, mas mães. 

e lembrou da mãe. e do pai. e da barreira que se impunha pensar nisso.

e perdeu o caminho e o foco. as vinte e três abas abertas. 23. o número mágico. pura coincidência. contou agora, 23 - até que tem poucas, geralmente tem mais - e quase parou de Escrever para ler sobre o japão. responder a mensagem. saber mais sobre o incêndio. aquela vaga aberta. as fotos de cães engraçadas. um vídeo bizarro. foco. foco. foco. nunca teve. nunca teria - será? - a criação num ambiente bombardeado de tudo. as mudanças que viu em trinta anos. o gráfico ascendente e vertiginoso. uma montanha-russa. o barco viking.

lembrou do medo que tinha de barcos vikings - aquele brinquedo besta - já havia entrado em brinquedos bem mais desafiadores da sua capacidade de manter o que há dentro, dentro. giros espetaculares em tantos vetores possíveis. mas por que só aquela coisa besta de subir e descer. aquele pêndulo disfarçado de um navio - que jamais faria aquele tipo de movimento, bom frisar - que trazia a lembrança de medo. e só isso. e lembrou que não, não. havia entrado em um barco viking depois de velho e notara que aquele medo era infundado - até gostei - e lembrou de tantas coisas que esquecia. desde o medo que já não tinha até o amor que já não lembrava. e lembrou que já não amava algumas pessoas. e que algumas pessoas já nem eram memória. onde estavam aqueles sentimentos esse tempo todo? por onde andavam essas pessoas - quanto tempo, o que cê tem feito esse tempo todo - e toda sorte de pequenas fugas e falhas do hipocampo ao córtex.

e lembrava, por que Escrevia agora? havia um motivo. havia você. havia aquela ligação. havia aquela desculpa de não sair hoje - tou quebrado - havia. havia. o verbo que existe e possui. 

no passado. 

quinta-feira, novembro 07, 2013

skatoloj

só agora tinha notado que passara os últimos quatro meses dormindo no chão desde a mudança e que tudo estava ainda em caixas. toda a sua vida em caixas. de tamanhos e formas diferentes. e só agora olhou para aquele mar de quadrados e retângulos e quadriláteros marrons de papelão e pensou que aquilo tudo era sua vida. não tinha notado também que mesmo tudo que havia comprado desde então também ainda estava em caixas. a cafeteira ele comprou e fez algumas jarras de café, mas acabava sempre guardando-a de volta na caixa. os discos se apinhavam nas caixas já abarrotadas depois de ouvir algumas vezes. os copos alguns enrolados em jornal e empoeirados e alguns ainda úmidos viviam juntos, em caixas. toda a sua vida e pormenores em caixas. e passou a pensar nas caixas. não na vida. notou que quando comprou aquelas panelas novas e fez aquele jantar, a visão das panelas secas em cima da pia o incomodaram e ele precisou procurar as caixas ainda na área de serviço para as colocar lá dentro mais uma vez. os sapatos dormiam em caixas, mesmo os que estavam sujos de lama. toda sua vida. em caixas. compartimentos de cada pedaço seu no conforto de uma caixa. e o incômodo e o medo do que não tinha uma caixa específica. precisava ter tudo numa caixa. as da mudança ainda mantinham escrito ao lado em caneta piloto. roupas. decoração. livros. fotos. as coisas novas já não tinham o mesmo zelo, era apenas a inconspícua caixa marrom de papelão. mas cada uma ele sabia o que continha. as grandes. as pequenas. as mais amarrotadas, já desgastadas. algumas lacradas, nunca imaginou porque algumas dessas caixas sequer foram abertas, e ainda guardavam sua vida envolta em fita adesiva industrial. todos os pormenores de sua vida em caixas. no conforto de ter um invólucro marrom e discreto. fechado para o mundo. inacessível e encriptado nas suas semelhanças e falta de características. e pensava apenas nas caixas, não nas coisas. dentro das caixas, ele esquecia da foto daquele aniversário de quinze anos. dentro das caixas, ele esquecia daquele livro que mudou sua vida por um momento. o disco que ele pensou que era a trilha sonora da sua vida até aquele dia. dentro das caixas, sua vida estava compartimentada. claro, ele sabia onde estava tudo, e conseguia acessar cada um dos itens sem muito esforço. talvez apenas o esforço físico de se abaixar. abrir a caixa. romper o lacre. retirar cada um dos itens que estavam por cima. por isso inclusive deixava muito de sua vida em caixas. o esforço físico já o cansava só de pensar em mexer naquelas caixas. tantas caixas uma em cima da outra, muito trabalho mover. deixa pra lá. estava guardado. estava seguro. estava dormindo. em caixas.

quarta-feira, maio 22, 2013

le vent nous portera





o ciclo dos ventos nos molda com o tempo. de pedras duras e retas se fazem curvas, se moldam, se furam. não há barreira maior ou menor, o vento pede seu espaço. segue seu caminho. e sopra suave, como brisa. levando o pó. levando o brilho. levando a pele da terra. e sopra forte, como tormenta. e leva tudo. leva a casa. leva a memória. leva a paisagem embora. leva também o barco, que pensa que te domina. e assim pensamos que do vento fazemos música, e ele assobia. e pia. e canta. e soa. mas o vento traz o cheiro do mar, e leva embora o seu. o vento leva sua voz à mim, e cala nós dois nos dias mais frescos. o vento é apenas ar andando, o vento é pedir passagem. o vento é dizer tchau baixinho, no pé de seu ouvido.


(e querendo ou não, o vento sempre há de seguir)

quarta-feira, abril 10, 2013

de volta

o cheiro do ar é o mesmo, e ainda traz aquele gosto de sal. o silêncio faz o relógio gritar na parede. tudo parece igual, e parece que nunca fui embora. mas algo me diz por dentro que eu já fui, e talvez nunca consiga voltar.

o vento ainda carrega os mesmos sons distantes, de poucos carros que transitam e dão a impressão de ser um barulho de mar metálico e revolto. o calor ainda esquenta os olhos, a luz ainda cega. nada mudou e tudo está diferente. 

e talvez eu nunca volte.

terça-feira, janeiro 22, 2013

the hitchhiker's guide

é inevitável: uma estrada pressupõe um destino. pois estradas nada mais são do que espaços entre o que é o que será. ou coisas que são cada qual em seu canto e que se ligam. sem jamais se encontrar.

é inevitável. a estrada é caminho mas pra mim e o olho abrindo devagar de manhã e a luz desafiando einstein e entrando lenta nos meus olhos. as paisagens não existem pois na estrada eu vejo o destino. e sinto o cheiro fraco. o calor diferente. o ar que faz na pele outro sentir. longe ainda tenho nos olhos as imagens que verei.  quase chegando tenho na boca os sabores que provarei. e a estrada é passagem e passou.

(há quem olhe pela janela. e já olhei também. quando não havia destino e a própria estrada já se apresentada como o meu onde. a paisagem o largo o vento as placas os sinais marcações e cada entreposto posto e pousada. a estrada já é e foi e será sempre morada. quando o destino não existe)

é inevitável. o destino é um muro. ou um fosso. ou um fim. um precipício. os espaços entre o é e o será. sendo que o será é um muro. um fosso. um fim. um precipício. e onde está a paisagem se já vejo o destino-muro? já sinto o cheiro fraco do fundo? o calor e o frio do fim? a ventania que sobe das profundezas e traz na pele o leve arrepio que dá em cada pausa entre uma respiração prendida e outra.

a estrada e o muro chegando. o fim. a abandonado o destino - que nunca acolheria - os sinais e marcações. os entrepostos. postos. pousadas. a estrada é a morada. e do acostamento, a vida sempre pedindo carona.