quarta-feira, setembro 09, 2020

ao pó retornarás

quando eu fiz psicologia e estava começando a atender eu tive que procurar terapia, não só para lidar com o que eu já vinha lidando especialmente naquela época, mas a partir dali eu tinha responsabilidade com pacientes e minhas questões que já atrapalhavam minha vida não podiam atrapalhar a dos outros, minhas interpretações não podiam ser influenciadas pelas minhas problemáticas e enfim eu tentei. fui em várias terapias sem muito sucesso, mas na última terapeuta ela já na segunda ou terceira sessão me puxou esse fio da minha dificuldade em ser atendido, em falar e aceitar ser ajudado, e conversamos sobre modos de se expressar. na época eu já escrevia bastante, e jogava tudo que se passava por mim em uns microcontos cheios de metáforas e ficções absurdas mas cheias de um sentido que pra mim era uma coisa, mas que eu mascarava com tantas palavras conseguisse. eu acho que era um jeito de botar pra fora as coisas mas ainda me sentir protegido, e encontrar acolhimento não nas minhas questões, mas na forma como aqueles textos imbricados iam reverberar em outras pessoas, por mais que os outros encontrassem tantos outros sentidos diferentes dos que eu havia escondido ali. isso talvez fosse parte do jogo até. 

antes disso eu fui um monte de coisa, mas primeiramente eu fui criança. e diferente de um adulto, uma criança ainda não é um amontoado de escombros mal ajambrados. uma criança ainda não é uma coleção de ruínas, mas é ali na criança que as primeiras rachaduras vão se somando no alicerce de destroços que nos tornamos. a vida simplesmente acontece, e muito pode ser explicado depois, mas muito é apenas a vida acontecendo. chegar à vida adulta pode ser um navegar remado com empenho e direção, mas as vezes é só maré levando e vento soprando sem você entender muito bem pra onde vai. 

e agora eu falo de minha avó, joelina. se eu acreditasse em alguma coisa, eu diria que hoje ela fez sua passagem. mas por mais que eu possa dizer essa palavra aqui e ali, é mais uma convenção do que algo que eu acredite mesmo. não houve passagem. ela estava viva, não está mais. amanhã será cremada e todos os átomos que compõem seu corpo voltarão a fazer parte de algo inanimado, até voltar a fazer parte de algo animado eventualmente. e eternamente esses átomos irão seguir seu caminho: surgidos no coração de uma estrela, eventualmente pararam em minha avó. e agora seguem seu rumo, como vêm seguindo há bilhões e bilhões e bilhões de anos. 

a vida de joelina foi longa, e dos seus 95 anos foram vários escombros acumulados, como todo mundo que quase chega ao centenário deve ter. turrona, forte, temperamental, teve que criar 3 filhos depois de ser largada pelo marido, meu avô. e teve sua parcela de vitórias e derrotas na vida adulta. uma pessoa completa com todas as histórias e profundidades possíveis, e que eu jamais seria capaz de esquadrinhar nem se eu quisesse. uma pessoa completa em seus motivos, e completa em suas razões e desrazões.

infelizmente, em um ponto da história as nossas vidas seguiram entroncamentos diferentes. a vida simplesmente acontece. e muito poderia até ser explicado agora, mas em sua maior parte foi o que já disse três parágrafos acima: foi apenas a vida acontecendo. de nada adiantaria agora querer se perguntar onde remamos longe um do outro, e onde foi só o vento e a maré afastando por tantas e tantas vicissitudes que a vida insiste em ter. 

mas antes disso tudo eu fui um monte de coisa, mas primeiramente eu fui criança. e ela estava lá. e estava lá antes disso, quando meu pai antes de mim também foi criança. um fio que une pelo sangue e que acumula tantas e tantas histórias, três gerações de vida acontecendo. macrocontos, romances, novelas e folhetins de histórias e mais histórias metafóricas e literais, cheias de sentidos e palavras mascaradas e descaradas. vidas imbricadas que reverberaram em mim. agora. e tudo que levou à esse momento agora não vai fazer sentido, mas eu precisava expressar - não tão escondido agora. acho que é também parte do jogo. 

por mais que estivéssemos distantes, hoje se foi não só ela, mas uma parte gigantesca de minhas histórias. histórias que eu não ouvi. histórias que não deu tempo de saber. histórias que aconteceram comigo antes de eu ser escombro. histórias que aconteceram antes de eu sequer existir. parte de minha história se foi pra sempre, possibilidades se fecharam pra sempre e só me sobrou isso aqui e o sentimento que agora aparece é essa falta, essa cessação. talvez um pouquinho daquela culpa de sobrevivente, mas de um jeito diferente. uma parte de mim se foi e infelizmente a vida aconteceu de uma maneira que agora pesa um pouco mais do que anteontem, que talvez eu nem tenha pensado nela. tem hora de sentir, e é agora. depois vai ter a hora de racionalizar, e ver que não adianta muito encafifar nessas coisas. foi o que a vida apresentou. a vida sempre acontece. é parte do jogo. 

mas bem, eu precisava me expressar: adeus vó.