sábado, janeiro 23, 2010

hoje vi dois filhos enterrando um pai. com a calma e a certeza de que era aquilo um dos desígnios que desde que nasceram foram incubidos. intento esse nem último nem derradeiro, que se encontra no meio da vida, entre formar família ou passar no vestibular. atravancado no meio de um momento qualquer e outro mais pesado e sozinho. de súbito, ou de muita espera. momento que todos nascemos destinados, mas que por mais que se viva, nunca nos preparamos o suficiente. trabalho de cada filho: enterrar os pais. e escrever com um galho o nome em seu túmulo. e deitar uma flor por sobre uma lápide. e pôr a pedra que marca o lugar onde seu pai devolve ao mundo tudo que da terra ele sugou. para comer a poeira da qual ele agora é parte. deixar a terra devorar o que é agora só carne e símbolo. e se quem morre abre espaço para os que virão, isso conta apenas o espaço de chão que se mora, vive e morre. a falta acompanha até o costume. porque filhos enterram os pais e tornam-se eles também pais a serem enterrados. porque viver é entregar os mortos dia a dia, até sermos nós mortos também.

hoje vi uma mulher enterrar seu marido. e perder duas metades de si. e fazer ganhar o mundo um choro que por baixo quase se ouve o estalar de algo por dentro se quebrando. pobres mulheres que vêm ao mundo para trazer e enterrar, no espaço que sua longevidade permita. que assinam um contrato de enterrar seus homens. por vezes seus filhos. dando menos olhos de ver o mundo do que os olhos que o mundo cobre. cantando sozinhas e dando adeus. sustentando e sendo sustentadas. na força e na delicadeza de que lhes são características.

sei que nasci pra morrer. sei que hoje, de longe, só assisti. e quando sei ou acho que sei que tenho anos de mundo seco temperando minha carne. endurecendo minha pele. ajudando a secar as lágrimas que sobram sob meus olhos. tenho mais ou menos certeza. nunca estarei preparado.

sexta-feira, dezembro 04, 2009

about a boy

lembro de sentar no chão de tacos da sala e pensar em cada mundo subterrâneo que deveria existir debaixo de cada retangulo de madeira. e de quando eu levantava algum mais solto, imaginava a luz entrando de repente dentro daquele mundo sombrio e esquecido sob os tacos. pensava muito no subterrâneo, mesmo sem ainda sequer conhecer a palavra. e para os garotos - ou apenas para mim, não sei dizer - pensar sobre mundos sobre os quais ainda não temos palavras é parte de ser garoto. lembro de sentar e pensar o mundo. criar imagens onde o erro do pedreiro fez o rejunte parecer pintura nos azulejos. tenho no banheiro um índio. um padre rezando. um astronauta. um homem-foguete. lembro de fazer caretas pro espelho e pensar em como seria me ver de fora de mim. lembro de querer ser grande. bem maior. e não conseguia saber o que era ser adulto - o que foi sorte - mas queria saber o que era ser tão certo do tamanho dos braços e da força da voz. lembro de ser criança assustada e tensa. não tinha o tamanho do meu corpo, mas o tamanho da minha voz fininha e acanhada. lembro do brinquedo de montar, com o qual fazia mundos. ou casas e mais casas. e brincava de ser alguém maior do que eu era. e só. sozinho também brincava de boneco e fazia lutas em camera lenta. explosões eu fazia com a boca, assim como todo e qualquer efeito sonoro. existiam sempre mais conversas do que tiros e explosões e com um boneco na mão eu tinha desculpa pra falar sozinho e poder ouvir minha voz ou uma voz qualquer que de mim saía, mas não era minha. quando não falava com as coisas, falava com o mundo. mas sempre falei. sempre pensei falando alto sem falar. sempre tive palavras me acompanhando. mesmo quando faltava a palavra subterrâneo ou interestelar. porque eu lembro de pensar em estrelas. e do fundo do transporte escolar eu olhava o céu e pensava. pensava em sair por aquela mesma janela e voar e crescer. e ver o mundo virar criança sob meus pés. e ver o sistema solar virar gude em minhas mãos. e ver nebulosas. quasares. buracos-negros. estrelas de neutrons. muito antes mesmo de saber que existiam palavras pra tantas imagens fantásticas e assustadoras que me faziam dormir encostado no cantinho, coberto dos pés à cabeça.

lembro que ser menino dói uma dor diferente. que não se sente no corpo. que ser menino é ter cara feia sem ter fome. sem ter frio. sem ter medo. menino não chora. menino não fala. menino não pensa. mas cabeça de menino vibra quando a Menina passa. o coração de menino, que brinca de ser duro, pula diferente. o estômago de menino, que serve pra fome, sente uma coisa diferente. sem ter palavra pra isso. ser menino dói a dor de não poder ser menino. afinal, o que é que tinha de ser se não aquilo que sentia, e não o que falavam? do outro lado só ouço relatos, mas do meu lado da trincheira, as explosões e tiros eu fazia com a boca. que pra menino serve pra cabum pou e ratátátá. falar a gente falava por dentro. corpo de menino dói. corpo de menino chora.

lembro de saber que o mundo me pedia mais do que me dava. mas sabia que quando crescesse passava. lembro de saber que o mundo é hostil pros meninos e meninas. mas que quando eu crescesse, aliviava. lembro de pensar que o mundo podia ficar pequenininho sob meus pés. mas quanto mais cresci, menor fiquei.

sexta-feira, novembro 20, 2009

maombi kwa eshu

minha mãe é de fogo e de sal grosso. e rodopia na floresta. e voa por cima dos edifícios. e cala quieta por sobre as massas d'água. meu pai é de vento e de trovão. e cala mais alto quanto mais negra é a noite. e grita trevoso por sobre os cursos d'água e d'asfalto. e atinge prédios árvores e incautos. e é voz presente. e é luz presente. e é rasgar o céu.

pai e mãe, protege-me e abraça-me. afogue os traidores no dilúvio ancestral que pariu o mundo. queime os infiéis na fogueira do rancor divino. esse que destrói cidades e inunda. pai e mãe, leve de volta pro mundo a centelha que descansa por detrás dos olhos e que cospe fogo pela boca. pai e mãe, dança no mundo pra derrubar cada prédio árvore poste e muro que ficar em minha frente. dança pisando forte no chão, pra endurecer a terra que meus pés pisarem. dança pisando no céu, pra fazer chover quando é seco. pra fazer sol quando é triste. pra fazer raio quando é breu. pisa em minha cabeça pra quando eu levantar ficar da altura dos meus sonhos. pisa em meus calos pra quando eu lembrar que tem dor em cada sapato também tem quem lembre dos passos que já dei. pisa forte levantando poeira e som e fazendo música pra ninguém ouvir. baixinho e estrondoso. pai e mãe, protege que a gente some. abraça porque a gente tem fome, também. joga sal e vinagre em cada ferida aberta e faz cafuné se a dor for grande. escuta a prece de quem já não acredita. porque sempre é hora de fé pouca quando a dúvida é muita. abram as portas e as janelas que o chão do mundo é pouco pra tanto ar que quer sair e entrar.

minha mãe é de fogo e de sal grosso. meu pai é de vento e de trovão. meus irmãos me deixaram na escola e me mostraram a rua. e desenharam um mapa em meu corpo pra sempre que quiser me perder.

terça-feira, novembro 03, 2009

carta aberta àqueles que me odeiam (mas também aos que não me toleram, não gostam de mim, e aos que acharam que sou menos bonito do que costumava ser)

onde se lê:


sou e erro. sou humado e se não sou demasiado humano, pelo menos sou humano por muitas vezes entre a hora de acordar e a hora de dormir e erro. erro. erro. erro entre o dormir e o acordar, mas no sonhar o erro não deixa marca fora, só dentro. mas isso não conta. o que conta é que eu erro. e façam as contas dos meus erros, porque quem erra não lembra por muito mais tempo do que o necessário.

e se agora tenho problemas em conseguir fazer do dormir ao acordar uma jornada mais calma e preciso falar que sim, eu erro, é porque tem algo que esquecem e eu preciso lembrar. ouçam minha voz. olhem nos meus olhos. mágoa é cicatriz de erro que cortou a pele da calma mais fundo. rancor é nome feio pra coisa não falada. ou falada à toa, sem ouvintes, numa floresta qualquer em tunguska. eu erro, erro, e erro. mas se não ouvem minha voz e não olham nos meus olhos, fica só a voz do erro. que não muda e sempre te acorda rouca no fundo do ouvido, sussurrando algo que passou-e-não-passará-jamais. nessa voz reside só um pigarro amargo de todas as gripes mal curadas e noites em claro, com frio e sozinho.

à todos que me odeiam, me odeiem ouvindo meus olhos. olhando minha voz. sabendo quem sou eu e quem é meu erro. me odeiem, e tudo bem. me julguem, e tudo bem. mas não esqueçam que eu escuto e falo. quase ao mesmo tempo e quase sempre.


e pra quem procura a moral da história, procure andando e olhando pros lados. pra cima. pra baixo. pra si mesmo. procure no mar e no céu. procure em qualquer coisa com mais de dois lados e menos frágil que o ar que você sopra. porque todo castelo de cartas erguido sempre tem volume, cor e história. mas passado o vento, sobram apenas duas possíveis faces caídas na mesa. se o valete sorri pra você ou te dá as costas, agradeça à quem for de agradecer, mas ele sempre só vai poder te oferecer isso.

atenciosamente,

r.

leia-se:

obrigado.