olho para meus olhos e não vejo mudança. se os pigmentos da iris mudaram não sei, nunca reparei. olho para as minhas rugas e vejo as mesmas nos mesmos lugares. as mesmas cicatrizes feridas do tempo. as mesmas marcas que cada mágoa e cada sorriso deixou. a mesma folha de ponto de cada sentimento que passou por mim. nada mudou. os cabelos brancos que conto todos os dias mantém-se os mesmos. quatorze. conto-os com displicência, claro. mas devem ser os mesmos ou devem substituir os que arranco em lampejos de raiva do tempo. ele que nem tem culpa. as dores são as mesmas. antes de chover é o joelho. ao acordar é nos tornozelos. antes de dormir é nas costas. nos punhos. no peito. sempre achando que é infarto. mas pode ser gases. mas pode ser nada. provavelmente nada.
sigo o rastro das dobras em meu corpo e com os dedos do olhar percorro cada micro-vale e cada estrada aberta em meu corpo e vejo o mesmo mapa. posso afirmar depois de categoricamente me observar e analisar o meu corpo inteiro: não mudei de ontem para hoje. mas então porque o peso que não se sente - aquele dentro da cabeça, feito de alguma coisa que a gente não pega, não mede, não pesa e não carrega em algum tipo de vesícula no corpo - porque esse peso, essa fatia de si, essa substância, me diz que estou mais velho?
não mais velho de corpo, porque esse me engana sendo igual, mas eu sei que morre todo dia um pouco. mas mais velho de como olho o mundo. como se meus olhos criassem um glaucoma invisível que apenas enverniza a vida com a laca da idade. olho o mundo olho a janela olho as pessoas e me sinto como se eu tivesse dado um passo à frente. ou para trás, não consigo discernir.
não tenho pensado o mesmo que ontem e não quero pensar o mesmo que ontem. olho com muito pouco enfado o fardo que carreguei na juventude que ainda me pulsa nas veias. mas olho como se não fosse de agora. olho a arrogância da tristeza adolescente - que vê toda a felicidade como ilusão - como algo apenas. triste. vazio. pouco. são tão poucos anos que nos marcam a vida inteira. são tão poucos julgamentos que levamos numa mochila. na bolsa. no bolso da jaqueta. pra um sempre que não é sempre. pra um eterno que dura tão pouco. porque olho assim então se estou o mesmo com as mesmas rugas e as mesmas marcas e as mesmas forças por dentro de cada veia?
esqueço por um segundo. lavo os pratos. ouço algo tocar. fora, nesse caso. faço um esforço mínimo para me sentir vivo, porque viver hoje é força e é vagalhão. a vida é maior do que eu. sou apenas um poço de marcas.
e feliz.
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