só agora tinha notado que passara os últimos quatro meses dormindo no chão desde a mudança e que tudo estava ainda em caixas. toda a sua vida em caixas. de tamanhos e formas diferentes. e só agora olhou para aquele mar de quadrados e retângulos e quadriláteros marrons de papelão e pensou que aquilo tudo era sua vida. não tinha notado também que mesmo tudo que havia comprado desde então também ainda estava em caixas. a cafeteira ele comprou e fez algumas jarras de café, mas acabava sempre guardando-a de volta na caixa. os discos se apinhavam nas caixas já abarrotadas depois de ouvir algumas vezes. os copos alguns enrolados em jornal e empoeirados e alguns ainda úmidos viviam juntos, em caixas. toda a sua vida e pormenores em caixas. e passou a pensar nas caixas. não na vida. notou que quando comprou aquelas panelas novas e fez aquele jantar, a visão das panelas secas em cima da pia o incomodaram e ele precisou procurar as caixas ainda na área de serviço para as colocar lá dentro mais uma vez. os sapatos dormiam em caixas, mesmo os que estavam sujos de lama. toda sua vida. em caixas. compartimentos de cada pedaço seu no conforto de uma caixa. e o incômodo e o medo do que não tinha uma caixa específica. precisava ter tudo numa caixa. as da mudança ainda mantinham escrito ao lado em caneta piloto. roupas. decoração. livros. fotos. as coisas novas já não tinham o mesmo zelo, era apenas a inconspícua caixa marrom de papelão. mas cada uma ele sabia o que continha. as grandes. as pequenas. as mais amarrotadas, já desgastadas. algumas lacradas, nunca imaginou porque algumas dessas caixas sequer foram abertas, e ainda guardavam sua vida envolta em fita adesiva industrial. todos os pormenores de sua vida em caixas. no conforto de ter um invólucro marrom e discreto. fechado para o mundo. inacessível e encriptado nas suas semelhanças e falta de características. e pensava apenas nas caixas, não nas coisas. dentro das caixas, ele esquecia da foto daquele aniversário de quinze anos. dentro das caixas, ele esquecia daquele livro que mudou sua vida por um momento. o disco que ele pensou que era a trilha sonora da sua vida até aquele dia. dentro das caixas, sua vida estava compartimentada. claro, ele sabia onde estava tudo, e conseguia acessar cada um dos itens sem muito esforço. talvez apenas o esforço físico de se abaixar. abrir a caixa. romper o lacre. retirar cada um dos itens que estavam por cima. por isso inclusive deixava muito de sua vida em caixas. o esforço físico já o cansava só de pensar em mexer naquelas caixas. tantas caixas uma em cima da outra, muito trabalho mover. deixa pra lá. estava guardado. estava seguro. estava dormindo. em caixas.
Caralho que retorno triunfal! \o/ Muito foda!
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