sexta-feira, março 16, 2007




"o único acontecimento traumático de minha vida foi meu nascimento, o resto foi só um preparo pra morte". tinha se assustado por pensar nisso com tão pouca idade. não só por pensar, como por ter chegado a escrever com sua letra errática em sua agenda, como se fosse uma frase de grande efeito, um pensamento basilar para a epistemologia de toda sua ciência até então. nesse momento, de assustada passou a se sentir um pouco envergonhada. mas bem, era a pouca idade. e agora que definitivamente estava morta, todas essas pequenas coisas, todas essas grandes coisas e todas as outras coisas que circulam entre as pequenas e as grandes perdem um pouco do sentido. ou melhor, o sentido ainda estava lá. mas esse é o ponto: o lá já estava bem distante. divagou um pouco sobre esse pensamento mas logo lembrava da agenda. não era grande coisa, era mais uma agenda de brinde, pequena, preta, com uma pequena fita amarela para marcar as páginas. como se uma agenda fosse um livro e você não se perdesse no tempo da agenda. começou a divagar sobre o tempo e lembrou. lembrou que na verdade essa agenda já não servia quando passou à escrever, já estava 4 anos atrasada e arriscou ter uma certeza: não era terça-feira no dia 9 de janeiro do ano em que resolveu postular seu grande pensamento. isso era uma obviedade que só depois da morte pode ter algum sentido em se atentar à isso. os anos são cíclicos, é verdade, mas os dias da semana são de outra ordem. e de que importa se agora o tempo nada mais é na sua mente do que a lembrança do grande relógio dourado do seu pai, e a sensação do tempo não mais existe? arriscou ter mais uma certeza: nessa terça-feira do dia 9 de janeiro do ano da agenda, não pensava na frase que ali estava registrada. e todo o seu pensamento de ter se preparado para a morte desde que nasceu já tinha perdido mais ainda o sentido, não sabia se era porque agora definitivamente estava morta e esses pensamentos no momento de nada serviam, ou se era porque procurava ainda uma consistência que nunca teve enquanto era viva. notou que estar vivo é ser inconstante, mas essa é uma briga consigo que ninguém assume e divagou um pouco sobre isso, como se fosse uma iluminação, mas logo passou à pensar em outra coisa, pois não tinha mais importância. tentou lembrar o que ela tinha feito ou pensado na terça-feira, dia 9 de janeiro do ano da agenda e o que tinha mudado quatro anos depois, se é que tinha mudado alguma coisa. talvez seja alguma característica da memória dos mortos, mas não lembrou, como não lembrava direito de nada que tinha de diferente entre os quatro anos que se passaram do dia que ganhou aquele brinde da empresa onde o pai trabalhava e o dia que sentou-se sozinha em seu quarto e decidiu escrever em sua agenda. talvez tenha perdido quatro anos, mas lembrou que na verdade isso pouco importava. não porque agora estava morta, mas porque se o único acontecimento traumático da sua vida foi o seu nascimento, porque no dia que tinha ganhado aquela agenda ela não foi atropelada por um caminhão e tinha morrido quatro anos antes de notar isso?


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