quinta-feira, junho 26, 2008

shithappens

você pegava uma cadeira e botava na rua de costas pra janela. de frente pra rua que em nada havia vida de cidade e de gente e de coisas. só uma cadela manca latia longe mas talvez nem passasse em frente. botava a cadeira na rua de frente pro mundo que não acontecia em sua frente. de costas pra um mundo que não acontecia as suas costas. e do alto talvez um avião. talvez cheio de passageiros e malas. talvez descesse do céu em chamas de frente pra rua. de frente pra cadeira. de frente. e o avião caísse em chamas e explodisse enorme bola de fogo e fuligem e pedaços de coisas vivas e mortas. de frente. e você morre. e morrem juntos noventa e dois passageiros cinco tripulantes. noventa e nove vidas se contarmos a cachorra manca que não conseguiu correr. nem chegariam à cem. dezessete primos de alguém. quinze pais e mães de mais outros que chorarão daqui a algumas horas em frente à tv. quase todos só filhos de mães vivas e mortas e pais vivos e mortos que choram sim ou não em frente à tv. um ou dois malditos filhos de chocadeira porque a morte não escolhe caráter. quatro ou cinco funcionários do mês de alguma empresa que não liga muito pra eles. uma aeromoça bonita que dois vôos atrás se chateou com alguém que não morreu dessa vez. três cardíacos e um epilético. um que talvez fosse diabético. tinha três barras de chocolate no estômago que viraram cinzas junto com ele. uma cachorra manca que não conseguiu correr e uma gata persa que dormia em uma caixa do lado de malas e malas de histórias. laptops importantes. cds piratas. bijouterias. fotos e máquinas fotográficas. histórias e presentes. um violão no qual alguém conquistou outra pessoa que no futuro choraria. ou que apenas acreditaria nisso como aqueles que acreditariam nas 4 bíblias que queimariam depois de largadas na bagagem.

dez segundos antes da queda você sentado de frente pra rua o avião em chamas. setenta segundos antes da queda você sentado o avião caindo. trinta minutos antes apenas pessoas. dois minutos depois apenas números. três horas antes despedidas ou esperanças de chegadas. quarenta minutos antes alguns dormiam e esperavam. outros esperavam e sonhavam. outros apenas bebiam refrigerante ou água ou os dois ou nenhum. quinze segundos antes da queda o som do mundo caindo era apenas um avião caindo e você sentado de frente pra rua olha para o lado e vê. é um avião caindo. você vê o avião e você está sentado de frente pra rua. a cachorra manca não possui quatro patas plenamente funcionas mas um olfato cerca de duzentas e dezessete vezes mais poderoso e já antes sente o cheiro de querosene metal gente sonhos e histórias queimando e o barulho do mundo caindo e era só um avião. a cachorra manca tenta correr. você vê o avião e fecha os olhos. dez segundos antes da queda você sentado de frente pra rua o avião em chamas.

ou então noventa e oito segundos antes da queda o avião em chamas você sentado em uma cadeira de frente pra rua. arruma os chinelos. levanta a calça. faz uma dança da chuva. arrasta poeira e pedrinhas e chinelos pelos chão e os deuses da chuva ou do sol ou da água que cai na terra ou das lágrimas do céu ou tupã. ou jeová. ou teotihuacan. ou o santo deus gravidade humidade relativa do ar ionização. ou o santo deus deus dos judeus javé jesus e maria e o menino jesus e o espírito santo. todos juntos ou separados em cada gota fazem chover. e chover e chover como deuses fazem quando querem. 70 segundos antes da queda e você dança para os deuses e deusas que te ignoram e te atendem o desejo. porque uma dança da chuva só existe se houver chuva e sempre assim haverá de ser. e os chinelos já não arrastam porque planam. porque boiam. porque afunam em água que desce do céu e na terra encontra descanso. e as ruas se enchem e a cachorra manca talvez morra por ser manca e não saber nadar, porque nem sempre toda história é sempre feliz. e enquanto você nada a dança da chuva golfinhos nadem ao seu lado. ou peixes ornamentais. ou o beta em seu quarto. e quinze segundos antes da queda e o avião pousa suave. como um navio que voltava de um passeio no céu. vinte e sete mortos mas menos mães filhos primas chefes e funcionários chorando no outro dia. caso isso importe. e os golfinhos saúdam os vivos menos ou mais destroçados. ilesos e milagreiros. o seu peixe beta encontra a liberdade temporária de uma rua. que é menor que o oceano mas enfim. vinte segundos depois da queda e você bóia em volta de destroços e malas e histórias. na mão uma marguerita com guarda-chuvinha e uma azeitona. a cabeça em cima de um corpo que bóia. feliz e triste por salvar vidas e não salvar outras vinte e sete. como se tivesse os matado também junto com o deus da gravidade. mas a culpa não era dele. e os golfinhos faziam piruetas no ar e o céu era lindo como uma tarde misticamente chuvosa pode ser.

ou então cento e trinta e sete segundos antes da queda o avião não vai cair e talvez por um atraso chegue atrasado ao seu destino. ou não. mas cento e trita e seis segundos antes da queda que não aconteceu você sentado em uma cadeira de frente pra rua. de frente pra rua que em nada havia vida de cidade e de gente e de coisas. de costas pra janela que em nada pareça cidade e gente e coisas. você sentado em sua cadeira e nada acontecendo no mundo dentro e fora de você. de cada lado dentro e fora da janela. um carro passa em uma poça de água e você está cheio de lama. a cachorra manca talvez latisse ou perseguisse o carro. e você cheio de lama.


a vida acontece.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

E aí?