quinta-feira, março 20, 2003

Começou a guerra.

E todos nós somos estatísticas pra guerra. A guerra transforma o sangue em números.
Não importa se foi o seu José, comerciante, que morreu com a cabeça esmagada pelos escombros de uma bomba e que não pode ser reconhecido pela mulher e suas três filhas, tendo que apelar para o exame de arcada dentária e indo parar num caixão fechado, e velado com mais os cinco outros vizinhos que morreram na mesma bomba. A estatística é fria: Seis morrem após explosão.

Mas tem a tevê. Tevê e Estatísticas adoram a guerra.
A tevê focaliza no rosto da criancinha que acaba de perder toda a família e agora não tem mais ninguém pra cuidar dela. foca no rostinho desesperado. foca no lado, o olho sujo de remela e as bochechas cheias de fuligem. foca o olho sujo, com lagrimas escorrendo. foca a lágrima escorrendo pelos olhos remelentos e pela bochecha suja de fuligem. 23412412 pontos no ibope.

milhares de brasileiros, longe das bombas e dos tiros, "salvos" atrás do seus controles remotos, choram junto. "isso é um absurdo!". "coitada!". "isso é coisa do demônio!". "bush filho da puta!". "porra caralho puta que o pariu, existe ujs em cada canto do brasil". e por aí vai.

depois entram as estatísticas. brasileiros adoram estatísticas, o brasil tem milhares de empresas de estatística que fazem milhões de estatísticas e apresentam bilhões de resultados, nos quais ninguem confia em nenhum mas acredita em todos. é uma maravilha.
as estatísticas racionalizam o mesmo brasileiro sentado no sofa, que começa a limpar as lágrimas pelo bebêzinho órfão árabe e pega sua calculadora mental e começa a contar.
um trilhão de reais em orçamento militar
prováveis trezentos e cinquenta mil vítimas
um quilômetro de área de destruição da bomba-moab.
dois mil quilômetros de alcance dos mísseis balísticos iraquianos.
etc.
etc.
etc.
etc.

a tevê fica brincando com nossos sentimentos. e dá-lhe imagens chorosas, e dá-lhe números. e dá-lhe musiquinha e vinheta de crianças sujas e barrigudas, e dá-lhe infográficos. nunca temos tempo suficiente pra ficar tristes ou racionais. nunca temos tempo pra pensar direito nos números, nem se revoltar com as imagens. ficamos assim, meio assistindo.

talvez seja só besteira minha. mas eventos como a segunda grande guerra ficaram tão distantes no nosso imaginário, e até mesmo inexistentes no imaginário das pessoas jovens, que até esquecemos o que a barbárie leva. destruição e caos somente.
cinquenta e cinco milhões de pais, mães, irmãos, filhos, namorados, esposas, alfaiates, soldados, médicos, etc, morreram e viraram apenas cinquenta e cinco milhões de mortos. famílias inteiras desapareceram para sempre. outras se desestruturaram para sempre.
mas apenas o número é lembrado: cinquenta e cinco milhões.

e será que vai ser assim no iraque? acho que sim.
dez mil.
cento e trinta e oito mil
um milhão e quinhentos e setenta e quatro.

toda a morte vai virar um número pra um esperto qualquer decorar e acertar na gincana da escola...

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