segunda-feira, maio 09, 2005

galhos
parte 1 de parte alguma


se ainda chove é porque ainda é tudo a mesma coisa, pensava pois que os céus - ou quem quer que os controlava - tinha Algo contra ele. se punha muito em conta, é verdade, mas tinha certa razão pois se os astros não conspiravam de facto contra ele, as coincidências constantemente declaravam sem sombra de dúvida que Algo estava lá. e claro que isso tudo era real, era verdade e acontecia. lembrava do encontro prematuro com a idéia de morte quando um colega de escola havia sido atropelado depois da aula. tinha 7 anos e não lembra bem do que sentiu com a perda (que nem foi tanta assim), mas lembra que o baque do menino no capô do carro ressoou em cima do estômago, bem dentro dele, como um baque de tambor abafado, curto e abrupto. naquele dia também chovia. lembra que a morte sempre se fez presente e lembra que Ela sempre se apresentou à ele das maneiras mais dissimuladas possíveis, teve pais e avós saudáveis e que duraram muitos e muitos anos, parentes distantes que por acaso morriam não faziam tanta falta, mas sempre era um garoto do colégio, uma senhora que morava no prédio, um menino da mesma rua do avô, sempre alguém ali perto dele que morria e com isso zombava dele que ainda estava vivo. se fosse outro, ignoraria por completo todas essas mortes, afinal, o que é a morte de um desconhecido? é apenas a plena demonstração de que o que vive, morre. e nisso nada via de mais.

prestava bastante atenção em quem vivia e quem morria, em como tinha morrido, e procurava saber qual a ligação da pessoa com ele. chacinas em são paulo, terremotos na síria, maremotos na indonésia, explosões na espanha, nada disso interessava. ele queria saber da morte do engraxate na rua da figueira, do suicídio do médico que atendia na vila sendeiros, do envenenamento do advogado de sua tia. ele gostava de se ligar à todas as mortes que podia, e de com isso, com a chuva logo hoje e com o fato de que ele tropeçou ontem e rasgou uma calça nova pensar que sim, Algo estava contra ele. e era Ela, que o rondava. tinha uma lista de como cada morte naquele canto do mundo estava relacionada à ele de alguma forma - tinha duas listas, na verdade, uma real e uma imaginária, bem mais ampla e eternamente revisada. o engraxate foi o mesmo que o pai havia dado cincoenta centavos no dia que foram comprar pregos na loja de ferragens, o médico tinha sido o mesmo que havia tratado de uma série de furúnculos em sua perna, o advogado de sua tia havia ajudado a mãe com a separação.

não pensava que a cidade era pequena, e que sempre morre alguém conhecido. era sempre ele. talvez fosse verdade, parecia muito ser e todos poderiam acreditar, se eu aqui dissesse - mas isso não vem ao caso. à constatação de que a morte brincava com ele algum jogo obscuro o fez retrair-se por um momento. não queria ser o responsável pela morte daqueles que apareciam em seu caminho. mas isso foi por um momento, afinal, nascer é se dirigir pra morte, e pessoas morrem sempre. isolar-se apenas o faria sozinho e mais triste ainda. e era curioso, queria saber qual era a razão daquela brincadeira. começou à se divertir. começou a lista mais ou menos por essa época, salvo engano. no começo tinha apenas seu nome e um desenho dele no meio do papel. algumas setas e nomes dos que morriam. como uma árvore onde ele era raiz e tronco e de onde saiam galhos macabros. depois a lista começou à incluir recortes de jornal, datas e fotos, quando conseguia. ainda era um garoto normal, não queria que Ela descobrisse que ele já sabia de todo o jogo, ainda jogava futebol no colégio, paquerava uma ou outra menina (às vezes, por uma maldade sórdida e fria de querer que a menina morresse), não era popular positiva ou negativamente, mas era suficientemente apagado para não chamar atenção. da Lista e da sua diversão com a Morte ele era a única testemunha.

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