cigarro
um banho quente, grosso, forte. pra contrastar com ele mesmo. as gotas fartas escorrendo pelos cabelos, pelos pelos, a pele se encharcando e aproveitando o pouco de calor. fora, a chuva castigava o telhado e os transeuntes deixando o céu cheio da coisa indizível que fazia um céu em dia de chuva. enfim, a chuva não importava tanto. a chuva tinha outro cheiro. e o cheiro dele, esse sim, importava. importava, incomodava. me incomodava. talvez nem "dele" fosse. mas "nele". ao cair da noite, ou na madrugada, o cheiro carregava aquele odor de um dia. não era um fedor de suor ou o cheiro de humano, nada naquele cheiro era humano. era o cheiro da rua, o cheiro do mundo, era cheiro de cigarro, de fumaça, de um dia inteiro pesando nas costas, colando na pele, formando uma casca. não era nenhum grenouille, mas tinha um nariz enorme. não, não é tão grande assim. mas sentia o cheiro como se vindo não só de fora, mas de dentro. como se ele além de sorver com as narinas, engolisse cada partícula odorífera com a boca para dentro de si. estava impregnado, por dentro e por fora. então era esse momento que ele esperava: o banho.
fechava os olhos e os virava em direção à água, deixava o chuveiro massagear seu rosto, seus olhos. sua boca. o nariz enorme. a água ia arrastando do cabelo aos pés tudo o que o incomodava. pelo menos o que podia ser sólido o suficiente para ser arrastado. o cabelo grudava morno na testa, a boca se enchia d'água e cuspia. os pelos no rosto eriçavam com o calor. no pé, uma unha encravava. ele não via, aliás, não dava para ver. mas ele sentia. não pelo cheiro, é óbvio, mas ele sentia por dentro. a unha iria encravar. a minha unha vai encravar. e assim ia no banho reconhecendo cada coisa que acontecia em seu corpo. as costas cansadas e doloridas. as mãos macias se endurecendo. a irritação na pele se alastrando e coçando. a barriga vazia denunciava fome. os olhos quando abertos denunciavam a falta dos óculos. como se transferisse seu tato para cada gota de água que percorria seu corpo, sentindo os sulcos que se formavam na pele, sentindo os poros à soltar seus nojos. e daí começaria o massacre.
com o sabão tentava arrancar seu cheio. o meu cheiro. o cheiro nele. pela espuma translúcida subia um cheiro artificial de coisas que ele jamais cheiraria. esfregava as mãos, os braços, o pescoço, o rosto, o corpo, o sexo. esfregava até ficar vermelho. como se quisesse arrancar até dos músculos o cheiro que o importunava. nem que a água ficasse rubra, nem que ele tivesse que arrancar a própria pele. queria se ver longe do cheiro. a água acumulava no chão do banheiro, arriscando inundar tudo. ele não se importava, não era ele que iria limpar depois. o que ele tinha que limpar estava ali debaixo da ducha. era e...Ele.
o céu do lado de fora poderia estar como fosse. aliás, o mundo que acabasse afogado pelo céu. pouco importava se do lado de fora tinha o cheiro úmido do céu. pouco importava se do lado de fora a noite se mostrasse agradável como o dia não tinha sido. era de dentro dele que ele queria arrancar aquele odor. era de cigarro. era de alcatrão. era de nicotina. era o cheiro de cada ansiedade adiada pelo cigarro que havia fumado há pouco. e antes desse. e o antes desse. e o primeiro do dia. não era o cheiro do cigarro em si, mas tinha cheiro de cigarro.
checava sempre se esse cheiro tinha saído. porque do cigarro só havia restado o cheiro. checava sempre se as unhas estavam limpas. porque a sujeira da rua deveria sempre estar lá, na rua, não aqui. e de novo esfregava. e de novo enxagüava. e de novo esfregava. até parar de sentir o cheiro. não que ele não existisse mais. ainda estava ali, impregnando-o todo. mas o que importava era ele não sentir. era ele não saber. como se lavando o dia, ele nunca tivesse existido. como se o passado nunca fosse presente. e como se o presente pudesse se anular apenas num banho.
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