quarta-feira, agosto 22, 2012

chama e fluido

hoje eu vou contar uma história

andando pela rua vi algo escrito no chão que me chamou a atenção, fui pensando e montando um texto mentalmente até que notei que o melhor que eu fazia era sentar e botar num papel antes de esquecer. mal abro o caderno, um morador de rua me pede um cigarro. eu perguntei o nome dele e ele se assustou muito por alguém querer saber disso. alexandre hélio. ele me perguntou o que eu tava fazendo e eu disse que iria escrever. "poesia?". e eu disse que não, e ele disse que escrevia poesias. que adorava. eu pedi pra ele fazer uma poesia pra mim. ele sentou do meu lado, abriu o maior sorriso do mundo. deu um trago no cigarro, olhou pra ele e então e ele fez essa poesia na hora:

chama e fluido (alexandre hélio)

acende inerte antes de completar vinte
vinte cogitada, vinte mascotada
vinte mais camadas
vinte ver-te você

entre lábios, vinte
indicador
polegar
casal vinte
eu vinte e você

perguntei qual era a do vinte, e ele "pô, vinte cigarros numa carteira, né?" sem tirar o olho do seu cigarro aceso.

carioca, dorme em frente ao Club Homs, na Avenida Paulista. 35 anos, alguns deles na rua. muito articulado, educado, calmo, falava muito bem. perguntei como ele tinha parado na rua, ele disse que tinha sido por causa de um amor. Amanda. estudou só o ginásio. o resto, aprendeu em bibliotecas. adora a Monteiro Lobato, na República. acessa a internet de lá, escreve e lê. me falou um monte de coisas, que pararam no meu caderno. passei uma hora conversando com ele, e aqui tem algumas das frases que eu anotei, o mais fiel que pude.

"absorver do amor é um equilíbrio que move sua auto-estima diante daquilo que você exerce filosoficamente diante da sociedade"

"nem luxo, nem lixo. todo mundo precisa gozar... defecar... respirar" e virou pra mim e me ordenou: "respire!"

"se você tem status ou dinheiro, todo mundo quer te bajular. o bajular dá tédio em qualquer ser humano. bajular é fácil, difícil é cuidar. porque essas pessoas querem sempre pesar o que eu estou valendo ao invés de ver o que eu sou enquanto existência"

me disse que o melhor momento da vida dele tinha sido "saber quem era meu pai e minha mãe de verdade" e que o pior foi que "ganhei 300 milhões de reais, e me roubaram. ganhei um concurso, mil barras de ouro, e me roubaram. mas o pior de todos foi achar a mulher que eu amo e terem me casado com ela".

concluiu que era lindo "esbarrar numa pessoa e ver que ela tem brilho".

depois de uma hora se levantou, me agradeceu pela conversa. agradeci ele por ter me achado.


domingo, agosto 19, 2012

Ida

Sonho tem tamanho e coube em três malas. Deixou um armário e um coração vazios. Desceu de escada, toc toc toc cada mala levando um mundo. As malas voltam, e um dia outros sonhos também. Mas o toc toc toc ainda ecoa pelo corredor, pelo quarto, em cada espaço vazio.

terça-feira, agosto 14, 2012

um bonde

um bonde. que modo mais anacrônico de morrer: atropelado por um bonde. em pleno século xxi. que desgraça. isso é a maior vergonha. todos os jornais vão estampar isso. enfim.

pois eu me vi morrendo. estrebuchando. agonizante. as rodas do bonde tinham decepado um braço e passado por cima do tronco deixando um vinco e um talho e me arrastado pelos trilhos num rastro de tripas e sei lá o que mais. impossível de se sobreviver. uma pena. tinha muito sangue e tenho que admitir, é muito estranho se ver morrendo. e eu estava lá morrendo. chiando e grunhindo alguma canção de morte qualquer, não sei. mas mais estranho ainda é ter notado que eu não era meu espírito ou minha alma que via o corpo morrer. procurei primeiro minha carteira, estava comigo. minhas chaves, no bolso direito. o celular no esquerdo. o braço - ainda bem - ainda colado no corpo. e os vincos só na camisa mal passada que ia trabalhar. mas peraí. eu não era uma alma, e ainda assim me via morto. e o mais estranho, ninguém deixava de me ver. mas pela naturalidade com que conversavam, com certeza não via aquela cena grotesca de mim mesmo, em duplo, esmagado, trucidado, desmembrado, eviscerado. eu estava sólido, e sentia que estava. toquei o rosto, ainda tinha a cicatriz na testa daquele acidente. toquei o poste. cheque. o muro. cheque. se não estivesse sólido, como estaria agora com a caneta escrevendo isso no papel? estou sólido. sou gente. estou vivo. mas estou morto. morri hoje à tarde, debaixo de um maldito bonde.

e eu vi o morto e olhei nos olhos dele e eram os mesmos que o meu. e guardavam os mesmos humores. e tinha a mesma cor. e olhei a pele e era mais pálida, mas guardava a mesma cicatriz daquele acidente. e olhava as roupas, em retalhos, mas recompostas fariam as minhas vestes de agora. eu estava vivo e me olhei morto. um morto.

mas não adianta muito falar pra alguém, né? louco. pirou. surtou. essas coisas. não me deixo cair nessa mesma armadilha. já caí algumas vezes, quem nunca? sofri com minha morte em silêncio. e fiz meu luto ali do lado, num café. sorvi o espresso como quem faz um ritual. mas na verdade, era apenas eu bebendo mesmo. do mesmo jeito. olhei a agenda do celular. as mesmas pessoas. pensei em ver um filme, eram os  mesmos em cartaz. do nada parecia que tudo era a mesma coisa, mas não. não era. tudo tinha mudado. mas bem, louco, pirou, surtou. essas coisas que se falam. não podia deixar transparecer.

mas peraí, eu estou vivo e acabo de morrer. isso significa muita coisa. significa que tenho uma nova vida pela frente. que eu posso recomeçar do zero. que nada que me amarrava à vida anterior servia. estava livre para me prender em todas as novas prisões que quisesse. tudo tinha um sentido, por menos que eu entendesse. eu estava vivo e acabara de morrer. isso significava muita coisa e eu precisava apreender isso com tudo que pudesse.

até que me ligaram do trabalho. estava atrasado.

lepra


primeiro veio a doença ou primeiro eu vim. nunca soube. mas quando a doença veio, eu aceitei. faltava algo em minha vida, e ela me deu alguma coisa. algo a que me ligar. algo sagrado. é uma doença bíblica. ancestral. me conectou com o mundo, eu que estive por tanto tempo sem saber onde estava. 

primeiro levou-me as unhas. uma por uma. no banho. lavando as mãos. procurando as chaves. mas não me importei muito. a doença tinha me tirado os motivos pra que eu precisasse de unhas. nada mais coçava. nada mais doia aquela dorzinha fina que parece que some quando coçamos. foram cinco. foram dez. foram vinte. 

primeiro levou-me os cabelos. fio a fio. no banho. penteando-me. deixando o vento bater em meu rosto. mas não me importei muito. a doença tinha me mostrado uma coisa: eu estava com ela, e ela comigo. as necessidades de cabelo enquanto ferramenta de corte não mais importavam. as necessidades de cabelo enquanto proteção ao frio não mais importavam. não precisava de flerte. tinha cobertas e aquecedores. a doença não me deixava sentir frio ou solidão.

primeiro levou-me os dedos. dos pés. nem sabia que não eram dedos. artelhos. e de que importa o nome? não me importei. nem sabia que precisava até notar o quão difícil era caminhar. cada tropeço, cada queda. mas não me importei muito. tinha aprendido já. e a doença tinha me tirado os motivos de desistir a cada tropeço, afinal, o que é uma queda. ela me apoiava. e não no sentido literal. ainda caía, ainda quebrava, ainda machucava. mas eu tinha ela, ao menos. sagrada. bíblica.

primeiro levou-me os dedos. das mãos. apertando uma mão, foi um. trocando um canal, foi outro. escrevendo para amigos, mais três. folheando uma página, mais um. enfim, um a um. dez. mas não me importei. não precisava de mãos para apertar, ou assim pensava. televisão nunca foi algo bom, sempre acreditei. os amigos entendem, ou não se importam. pra que amigos. livros sempre ocuparam espaço. acumularam poeira. enchiam-se de memórias. ocupava a minha cabeça. a doença tinha me levado os dedos mas tinha deixado os braços.

primeiro levou-me os braços, as pernas. não me importei. não tinha mais dedos. não tinha mais artelhos. já não caia. já não abraçava. não lia livros. a doença me fez entender. tudo supérfluo.

primeiro levou-me as vísceras. nada importa. não como. não respiro. não preciso.

no final, a doença e eu não sabiamos como nos entender. onde estava meu corpo que a doença levara, não sei. não sei se era meu também, a doença e eu não tinhamos mais diferenças. e o que era meu mesmo? a doença havia levado uma parte enorme de mim. quase tudo. mas será que aquilo um dia foi meu? não me importei. ou fingi que não. mas a doença já tinha levado meus olhos, não tinha mais como chorar. a doença já tinha levado meus dentes, um a um, não tinha como a ameaçar. a doença apodreceu minha lingua, que caira, não precisava mais falar. nos meus lábios, me deu um último beijo, antes de levar-los embora. eu.

mas também, eu que fui atrás. 



quinta-feira, agosto 09, 2012

ch-ch-ch-changes

se assumimos o risco e concordamos que tudo é circular, não haverá quebra nenhuma. se tudo muda e tudo continua o mesmo, não haverá quebra nenhuma. o dia é um giro. o ano é um giro. e a vida deve ser por aí também. não há quebra nenhuma. se tudo muda, nada continua o mesmo, ou nada muda, tudo continua o mesmo, isso é brincadeirinha de semântica, e de volta em volta, não me diz muita coisa. não haverá quebra nenhuma, mas eu estou pensando. meus passos pra frente só são uma reta se pensarmos pequeno, estamos todos caminhando numa bola.

terça-feira, agosto 07, 2012

shackleton

o quarto é um mar calmo onde repousa o conhecido. mesmo do escuro, nada se sobressai à calmaria. o vento não entra. não traz o gelo que castiga o que há lá fora.  o som é o o som da voz dos meus dedos, batucando cada uma dessas palavras desnecessárias. o quarto é um mar calmo onde nada mais repousa. 

a cama é um bote. é um barco. é um transatlântico. vazio. o quarto é ainda o mesmo mar tranquilo onde repousa o silêncio. onde repousa a falta. e a cama, enorme, está parada no meio desse oceano. do mar tenebroso. onde monstros com certeza aguardam, em repouso. 

a cama é um mar revolto onde repousa a falta. o quarto é a noite onde a calma aguarda. a cama aguarda também, enorme. vazia. em silêncio. em repouso.

segunda-feira, agosto 06, 2012

martha's hula hoop


tudo começou no mar. e da água e do sal que o forma viemos todos. tudo começou num choro, também de água e sal. e de onde venho, o choro não se faz diferente. 

a história também começou de um choro. um mês antes do tempo necessário, nasceu e chorou pela primeira vez. a mãe em uma maca. num corredor. tentando segurar o primeiro filho que insistia em nascer, para dar tempo ao médico chegar. mas queria nascer e "não adianta, ele já está saindo" e saiu. e chorou. 

quatorze anos depois chorou porque o amor da curta vida dele estava nos braços de outro. havia depositado toda sorte de pensamentos e desejos infantis naquele amor e no momento ela beijava outro. a vida aconteceu naquele momento, e no caminho para casa chorou. 

nove anos depois ouviu que não era amado. depois de anos e anos de promessas de eternidade, quando o eterno vale muito menos do que parece e é moeda fácil de quem conhece muito pouco o tempo. tinha conhecido muito de uma vida e chorou.

onze anos antes chorou madrugadas inteiras quando o mundo que ele conhecia parecia ruir como ruia o casamento dos pais. não dormiu vários dias e um dia o pai saiu de casa e chorou.

treze anos depois chorou. vinte anos antes também. vinte e cinco anos depois chorou mais uma vez. segurou tantas vezes e tantas vezes mais largou uma após uma as lágrimas que guardou. e chorou.

e essa é uma parte da história, que começou com um choro e noutro chegou. e essa parte da história é sua. e tantas outras também. tome conta da história e da parte do homem que com você foi. foi no choro e no sorriso. foi na lembrança. se alguma coisa tem um sentido, o sentido é circular e nunca termina. qualquer ponto nunca é fim, mas começo. hoje começou uma nova história, e como toda boa história, começou num choro.

todo dia um ciclo de fecha porque tudo começa no mar. e da água e do sal e do choro tudo vai e ao mar volta. e todo momento é um momento no ciclo. tudo começa num choro mas hoje não terminou nele. porque nada termina. hoje choramos. amanhã o mar leva nossas lágrimas.

toma conta de cada uma, mas chore sempre que precisar ter algo pra começar.