terça-feira, agosto 14, 2012

um bonde

um bonde. que modo mais anacrônico de morrer: atropelado por um bonde. em pleno século xxi. que desgraça. isso é a maior vergonha. todos os jornais vão estampar isso. enfim.

pois eu me vi morrendo. estrebuchando. agonizante. as rodas do bonde tinham decepado um braço e passado por cima do tronco deixando um vinco e um talho e me arrastado pelos trilhos num rastro de tripas e sei lá o que mais. impossível de se sobreviver. uma pena. tinha muito sangue e tenho que admitir, é muito estranho se ver morrendo. e eu estava lá morrendo. chiando e grunhindo alguma canção de morte qualquer, não sei. mas mais estranho ainda é ter notado que eu não era meu espírito ou minha alma que via o corpo morrer. procurei primeiro minha carteira, estava comigo. minhas chaves, no bolso direito. o celular no esquerdo. o braço - ainda bem - ainda colado no corpo. e os vincos só na camisa mal passada que ia trabalhar. mas peraí. eu não era uma alma, e ainda assim me via morto. e o mais estranho, ninguém deixava de me ver. mas pela naturalidade com que conversavam, com certeza não via aquela cena grotesca de mim mesmo, em duplo, esmagado, trucidado, desmembrado, eviscerado. eu estava sólido, e sentia que estava. toquei o rosto, ainda tinha a cicatriz na testa daquele acidente. toquei o poste. cheque. o muro. cheque. se não estivesse sólido, como estaria agora com a caneta escrevendo isso no papel? estou sólido. sou gente. estou vivo. mas estou morto. morri hoje à tarde, debaixo de um maldito bonde.

e eu vi o morto e olhei nos olhos dele e eram os mesmos que o meu. e guardavam os mesmos humores. e tinha a mesma cor. e olhei a pele e era mais pálida, mas guardava a mesma cicatriz daquele acidente. e olhava as roupas, em retalhos, mas recompostas fariam as minhas vestes de agora. eu estava vivo e me olhei morto. um morto.

mas não adianta muito falar pra alguém, né? louco. pirou. surtou. essas coisas. não me deixo cair nessa mesma armadilha. já caí algumas vezes, quem nunca? sofri com minha morte em silêncio. e fiz meu luto ali do lado, num café. sorvi o espresso como quem faz um ritual. mas na verdade, era apenas eu bebendo mesmo. do mesmo jeito. olhei a agenda do celular. as mesmas pessoas. pensei em ver um filme, eram os  mesmos em cartaz. do nada parecia que tudo era a mesma coisa, mas não. não era. tudo tinha mudado. mas bem, louco, pirou, surtou. essas coisas que se falam. não podia deixar transparecer.

mas peraí, eu estou vivo e acabo de morrer. isso significa muita coisa. significa que tenho uma nova vida pela frente. que eu posso recomeçar do zero. que nada que me amarrava à vida anterior servia. estava livre para me prender em todas as novas prisões que quisesse. tudo tinha um sentido, por menos que eu entendesse. eu estava vivo e acabara de morrer. isso significava muita coisa e eu precisava apreender isso com tudo que pudesse.

até que me ligaram do trabalho. estava atrasado.

2 comentários:

  1. Queria dizer que eu leio o texto com o seu sotaque. rs... Bjinhos dearest darling e força na peruca ai!

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  2. Essa coisa de morrer e estar vivo se chama experiência...
    Não deixamos de sentir, mas já conhecemos outros sentimentos...

    Amo tu

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