terça-feira, agosto 14, 2012

lepra


primeiro veio a doença ou primeiro eu vim. nunca soube. mas quando a doença veio, eu aceitei. faltava algo em minha vida, e ela me deu alguma coisa. algo a que me ligar. algo sagrado. é uma doença bíblica. ancestral. me conectou com o mundo, eu que estive por tanto tempo sem saber onde estava. 

primeiro levou-me as unhas. uma por uma. no banho. lavando as mãos. procurando as chaves. mas não me importei muito. a doença tinha me tirado os motivos pra que eu precisasse de unhas. nada mais coçava. nada mais doia aquela dorzinha fina que parece que some quando coçamos. foram cinco. foram dez. foram vinte. 

primeiro levou-me os cabelos. fio a fio. no banho. penteando-me. deixando o vento bater em meu rosto. mas não me importei muito. a doença tinha me mostrado uma coisa: eu estava com ela, e ela comigo. as necessidades de cabelo enquanto ferramenta de corte não mais importavam. as necessidades de cabelo enquanto proteção ao frio não mais importavam. não precisava de flerte. tinha cobertas e aquecedores. a doença não me deixava sentir frio ou solidão.

primeiro levou-me os dedos. dos pés. nem sabia que não eram dedos. artelhos. e de que importa o nome? não me importei. nem sabia que precisava até notar o quão difícil era caminhar. cada tropeço, cada queda. mas não me importei muito. tinha aprendido já. e a doença tinha me tirado os motivos de desistir a cada tropeço, afinal, o que é uma queda. ela me apoiava. e não no sentido literal. ainda caía, ainda quebrava, ainda machucava. mas eu tinha ela, ao menos. sagrada. bíblica.

primeiro levou-me os dedos. das mãos. apertando uma mão, foi um. trocando um canal, foi outro. escrevendo para amigos, mais três. folheando uma página, mais um. enfim, um a um. dez. mas não me importei. não precisava de mãos para apertar, ou assim pensava. televisão nunca foi algo bom, sempre acreditei. os amigos entendem, ou não se importam. pra que amigos. livros sempre ocuparam espaço. acumularam poeira. enchiam-se de memórias. ocupava a minha cabeça. a doença tinha me levado os dedos mas tinha deixado os braços.

primeiro levou-me os braços, as pernas. não me importei. não tinha mais dedos. não tinha mais artelhos. já não caia. já não abraçava. não lia livros. a doença me fez entender. tudo supérfluo.

primeiro levou-me as vísceras. nada importa. não como. não respiro. não preciso.

no final, a doença e eu não sabiamos como nos entender. onde estava meu corpo que a doença levara, não sei. não sei se era meu também, a doença e eu não tinhamos mais diferenças. e o que era meu mesmo? a doença havia levado uma parte enorme de mim. quase tudo. mas será que aquilo um dia foi meu? não me importei. ou fingi que não. mas a doença já tinha levado meus olhos, não tinha mais como chorar. a doença já tinha levado meus dentes, um a um, não tinha como a ameaçar. a doença apodreceu minha lingua, que caira, não precisava mais falar. nos meus lábios, me deu um último beijo, antes de levar-los embora. eu.

mas também, eu que fui atrás. 



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