sonhei que fazia faxina em minha casa sempre tão bagunçada. e a grande surpresa que me acometia era descobrir que minha casa era assombrada por um fantasma. o fantasma era visível o tanto quanto é possível para os sonhos, mas ainda assim assumia uma leve transparência, como se fosse preciso frisar que ei, é um fantasma. mas no sonho o fantasma em nada me assombrava, como disse, era uma grande surpresa, como descobrir uma gaveta em um armário que você nunca tinha visto antes. no caso era um fantasma. e por lembrar do armário, minha faxina havia começado por lá e o fantasma como se planasse por cima do meu ombro direito - ou às vezes do esquerdo, mesmo preferindo o primeiro - vigiava e supervisionava minha faxina.
enquanto organizava à maneira de sonho uma gaveta maior do que parecia, encontrava coisas de gaveta que numa faxina tornam-se ex-coisas nossas e encontram um destino que fica entre a lixeira mais próxima ou um despossuído mais longe. e o fantasma por cima do meu ombro lançava seu olhar. ei, esse broche vai jogar fora? mas ele é horrível e eu jamais o usaria. mas foi sua avó quem te deu, e é por isso você fica de lado nos almoços de família. e eu queria jogar o broche fora, mas o fantasma tinha razão. enquanto o broche voltava ao seu lugar de origem o fantasma ainda mantia seu olho clínico por sobre meu ombro direito. ei, e esse vestido, não foi o roberto quem te deu? sim, foi, mas nem nos falamos mais e além do mais o vestido nem cabe mais em mim e está fora de moda. sim, mas quantas vezes você usou esse vestido e quantas vezes você se sentiu bem e bonita com ele? sim, mas isso é passado. mas o passado só tem esse nome por capricho, ele sempre é presente. e eu concordei porque só de ver o vestido lembrei da primeira vez que o vesti e como num sonho - porque o era - eu já me encontrava vestido nele. achei então um álbum de fotos com fotos que nunca tirei. de momentos que vivi ou não. mas nem dei atenção, passei um pano pra tirar o pó e guardei. e não vai sentar e rever tudo isso? não, ué, eu tou fazendo faxina. e o que é rever fotos se não fazer uma faxina de dentro pra fora? não sei se entendi bem o fantasma, mas desisti de argumentar e por fim concordei e passei o resto do sonho vendo retratos. até que notei que o fantasma que me assombrava não demandava a posse de seu domínio, e pelo que eu lembrava, por baixo de minha casa não jazia nenhum cemitério indígena ou qualquer razão outra para que um fantasma a assombrasse. o fantasma não pedia nada, só observava minha faxina e me atrapalhava. fiquei irritada e acordei.
quando olhei pro lado, debaixo da minha coberta, vi o fantasma de novo. só que dessa vez com mais substância e nenhuma transparência. como se vivo e encarnado estivesse embaixo do meu lençol. aí sim eu me assustei. e via que mesmo com todo o escândalo que se pode dar quando se acorda do lado do fantasma que acabara de sonhar, o fantasma do meu lado, feito carne, osso e pulso, ainda dormia e ressonava com um sono tranquilo de quem dorme e sonha. levantei de um salto e corri pro banheiro, porque não há nada que água no rosto não lave de um sono. olhei pro espelho e me vi como nunca tinha me visto acordada. eu era visível tanto quanto é possível ser quando se está consciente, mas assumia uma leve transparência. vi que meus pés no chão também mal tocavam e voltei flutuando para cama que eu já não reconhecia. deitei do lado do corpo que dormia para tentar de novo dormir e sonhar.
mas estando em dúvida quem era o fantasma. e quem era eu.