quarta-feira, novembro 12, 2003

capítulo 0

havia começado tudo errado depois daquela noite. porque as vezes os começos chegam mais traiçoeiros do que você já espera deles. porque os começos começam sem que você saiba. porque nunca que você saberia que um simples bom-dia pode começar algo diferente. como eu não sei agora.

e não existe a auto-comiseração nessas horas. não existe o "como é que você foi deixar que isso acontecesse?" nessas horas. é só você e aquele ponto gigante piscando assinalando o começo da espiral negativa. do príncipio de tudo o que não era antes. o começo de algo, algo errado.

porque ela era uma miragem. não podia ser verdade tanta coisa verdadeira num só espaço físico. num só comprimido corpo. dizem que deus é contido, que construiu tudo o que há em sete dias. oxalá se ele tivesse mais tempo, se ele criasse mais tempo! se deus fosse mesmo perfeito, ó que pecado, talvez seria ela sua obra mais querida. mais que o mundo com suas coisas viventes. mais que o universo com suas nebulosas ardentes. mais que a vida com suas sofreguidões pendentes. mais não era. porque as coisas tão belas assim carregam dentro de si a semente do terror. o terror de ter e de ser algo tão ameaçador às pessoas em seus desequilíbrios sentimentais, como eu, e de ser por si só, a arma que mata um, que degola outro, que tortura e que tange longe a calma de todos.

mas era ela ali. a dois metros dos meus olhos e dois mundos da minha alma. zombando do nosso lado da trincheira dos derrotados com sua presença áurea hostil. porque, porque, porque? se de lado a lado já haviam sido feitas as pazes de meu mundo inacabado com as coisas etéreas e distantes de meus sonhos, porque era a visão de pesadelo que vinha agora encorpada na mais bela e fulgurante aparição? invocando imagens e desejos em mim que antes eu despejava apenas nas lascivas e provocativas mulheres de revista e tv.

eram olhos cinzas e pernas alvas que roubaram meu fôlego. que abduziram minha atenção às coisas cotidianas, que eu fazia com maestria em meu canto perdido pelo tempo e pelas pessoas. era só pra ser uma cordialidade largada à toa, uma implicancia com a educação, uma formalidade burocrática e ordinária de um "bom dia", mas acabou que solavancou meu peito num queimar desgraçado de engrenagem velha renascendo, atravancou a fala e me impediu de corresponder à única resposta cabível no momento. meu "bom dia" nunca foi, mas meu dia acabou indo com ela, seguindo suas passadas leves, seu arrastar suave, seu planar macio, pelos caminhos que ela seguia...

e tropeçando em mim mesmo, segui o rastro de seu perfume seco e amadeirado por alguns minutos eternos. os cachos brilhando enquanto fluiam numa maré de sabores etéreos, espalhando faíscas e deixando o ar impregnado daquele tão evidente frescor e lividez. até que enfim alcancei-a e tomei seu braço em minha mão molhada e febril, a sua pele macia roçando entre meus dedos. a visão de seu rosto volta à minha retina, seus olhos cinzas surpresos, seus ombros hesitantes, os lábios esboçando qualquer sentimento incompreensível, eu ali. parado. suando como num delírio febril. as mãos enormes, sem ter onde pôr. o chão que olhava sem coragem, covardemente evitando os olhos cinzas, ela indaga sobre o porque e eu expiro sem o fôlego que a sua voz me rouba...

"bom dia", eu disse.


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