terça-feira, novembro 20, 2012
amor líquido
e não importa o movimento das águas e o ciclo que fazem elas chorarem nesse céu que já foi de tanto sol. é na maré secante que mais sinto saudade.
domingo, novembro 18, 2012
domingo, novembro 11, 2012
10.11.12
secreto
e não foi por não tentar e insistir
e não acredito que você se deixou
mas não vai abalar ou demolir
o que tem, o que foi
vai sentida
o peso dessa decisão
teimosa ou ferida
sem saber o que será
e um fio dourado no meu travesseiro
é a prova e testemunha do que foi
mas tão frágil, se vai com o vento
o que tem, o que foi
vai sem pressa
demorando ou enrolando ou querendo ficar mais
não entendo o que se passa, mas a noite
vai saber do segredo que há
terça-feira, outubro 23, 2012
choiva
o corpo humano tem mais de 20 órgãos, mais de 630 músculos, 206 ossos. partes móveis e duras, partes moles e líquidas. linfa. sangue. fezes. urina. neurotransmissores. hormônios e outros milagres. o corpo humano possui partes e peles e nervos. o corpo é um objeto. e não é só físico.
uma parte é arrancada de um corpo e não é físico nem objeto. uma parte se arranca desse corpo e dói. mais que um dente extraído. menos talvez do que um membro sendo amputado. ou mais talvez. uma parte do corpo é arrancada e fica o vazio. não físico. nem objeto. o vazio.
o vazio ocupa espaço. o vazio existe. o vazio é coisa. o vazio dói. e o vazio está lá, no corpo humano. sendo falta e presença. sendo coisa e ausência.
o vazio acomoda-se. o corpo humano se acostuma com o vazio. e o vazio lá fica. por um tempo. não é nada, só um vazio. e ele não ocupa mais tanto espaço. ele existe. ele não é tão coisa. e nem dói tanto. o vazio é só um vazio, e faz as vezes de ser o que é. é aquela coisinha no fundo e dentro do corpo humano que não é órgão, músculo, osso ou líquido, mas que é. e você se acomoda. passa o tempo e é um ruído de fundo.
depois uma coisa surge e ocupa o espaço. você sabe os perigos, vai com calma. preenche a lacuna com aquela coisa líquida à conta gotas. de funil. aos poucos. mas transborda e enche o vazio que vira Coisa e é Algo. surge e ocupa o espaço. é física e é objeto. não dói como dente careado. não dói. é bom. é Coisa. é Algo. não tem nome, mas É.
e é arrancada de um corpo. mas não é.
e você volta pra casa na chuva, sentindo cada gota gelada em seu cabelo em seu rosto em seus óculos, encharcando cada fibra de sua blusa. ensopando seus sapatos suas meias maldito guarda-chuva que esqueci. você pensa na chuva. pensa que se ela lava esse céu imundo e triste, por que não lava qualquer coisa além de seu rosto pele e roupa. pensa no vazio. por que não pode a chuva já que invade tudo até o seu dedão do pé está molhado. por que não pode a chuva invadir. e preencher o vazio. de conta gotas. de funil. a chuva só te deixou molhado.
talvez você pegue uma gripe.
karl marx is right
o tempo é a água que dilui tudo que é sólido. o tempo não dá. tira. o tempo apaga. o tempo escorre e enxágua. o tempo limpa. o tempo é o vácuo crescendo e engolindo a memória. clareando a cicatriz. transformando em mais fina areia a maior rocha ígnea. o tempo é o vento erodindo a montanha do ser. o tempo é a borracha. o tempo é cruel.
mas tudo bem. o tempo cura.
060670
(depois de anos sem escrever uma música, me surge uma melodia e a letra saiu como se já existisse. que seja assim.)
quem lê
quando eu te encontrei
eu já me perdia
e não entendi você
pois não me entendia
o que eu posso te fazer
eu não me faria
pois eu sou como você
você é ainda
antes de me conhecer
cê já me conhecia
e não pude te esquecer
pois eu já sabia
o que eu posso oferecer
do que já não tinha
esperar o trem porque
você já partia
medo todo mundo tem
e sofrer é regra
pra cair em si porque
o amor entrega
mas não deixe de levar
o que tenho em ti
pois sei que vou precisar
pra cantar pra mim
você, você, você, você
você, você, você, você
segunda-feira, outubro 22, 2012
comiat
vou acreditar na ciência. nos princípios de causalidade. abraçar os fatos duros e matemáticos e sorrir na exegese das fórmulas e teoremas. esqueça a sincronia. esqueça o horóscopo. esqueça o tarô. esqueça o que não tem dado, não tem número, não tem certo. esqueça que na cabeça e no coração moram razão e amor. um é controle e o outro bombeia sangue e só. esqueça as guinadas e catarses, a vida talvez seja um autorama de coisas cíclicas buscando a entropia.
vou acreditar em heisenberg. vou acreditar em descartes. vou acreditar no eixo x e y, e nas parábolas, hipérboles, retas e curvas. vou acreditar que tem explicação, por mais que eu não acredite.
terça-feira, outubro 16, 2012
tears in waves, minds on fire
você me diz que é a interferência gravitacional da lua e me explica a matemática envolvida, eu não creio. a maré é coisa sua. por que culpar a lua, que há tempos nem vejo sobre esse céu pesado e atribulado? o mar que dista e falta eu sei que lá está, soando o som que sempre soou desde antigos tempos. o zum do vento, o som da garganta do oceano, a areia é um gelo sob os dedos da memória. eu lembro. o mar está lá, distando e faltando e soando e gelando e esquentando. o mar.
e a maré é coisa sua. incha o mar e infla o ego das águas. seca e retira e encolhe o braço do oceano. a maré é invenção. a maré é capricho seu. e vem e vai dizendo que é de hora em hora, mas eu sei que não é assim. é só porque a sua natureza é a natureza da terra e da água, e toda ela respeita horário e ciclo. a maré que leva a maré que traz são uma só. é fluxo e força. é coragem e preguiça. é ficar na cama encolhida, é sair por aquela porta dizer que precisa ir. você vai dizer que tem a ver com campos gravitacionais, física e matemática. o puxa e empurra dos corpos celestiais. as forças que unem as moléculas. mas não, é capricho seu.
da porta em diante, é a lua. são os corpos celestiais. é a matemática. da porta em diante é mistério, porque a resposta é sempre a mesma: eu não sei. do elevador descendo pra rua é talvez. de cada calçada até o que há lá é outra coisa. mas em cada cama há alguém sozinho, dormindo com respostas iluminadas nas mãos. cochilando com perguntas esquentando na barriga. em cada cama há um ou dois e isso é matemática. isso é soma. isso é divisão. isso é mistério. maré e onda. é capricho de outrem. é interferência gravitacional.
e são nos recados cantados que se encontra o indizível. a voz de um conta num verso. a voz de outro entrega no refrão. nunca se diz. se canta. e que busque você onde está a mensagem. ela está aqui e lá e em cada som que faz o mundo. mentindo a verdade do que você nem sabe se quer dizer.
o som da garganta do oceano não mente pois diz sempre o mesmo: eu sou maior.
e você acredita, porque por mais que a maré seja coisa sua, o mar revolto não obedece ninguém. não respeita nada e vai devorar cada suor e cada lágrima. vai apagar o calor dos corações. vai afogar o fogo de cada cabeça. vai deixar cinza. vai levar cinza. vai ser maior. e vai devorar tudo, transformando em onda cada capricho chorado e escondido.
sexta-feira, outubro 12, 2012
justdontknowwhattodowithmyself
é simples: eu não sei. e não entendo. é como acordar num sonho onde as línguas que se falam não são suas. não saber e não entender. as coisas acontecem. as coisas surgem. as coisas são. e aquela narração no fundo em russo. em iídiche. em swahili. em sons que você sabe que carregam sentido. mas apenas racionalmente. que sentido inacalçável é esse. é pedir um prato num país estranho. é conversar com os bebês. é falar consigo mesmo na língua que você já há muito não fala. é simples: eu não sei. e não entendo.
é simples: esperei por esperar. você não conhece a estação mas já te disseram: aquele trem ali passa. e você acreditou. e o trem pode ter passado. o trem pode até passar. mas você esperou por esperar. parecia claro ouvir o som dele rangendo os trilhos. parecia perto a vibração da máquina. parecia justo que depois de um tempo qualquer de minutos, ele chegasse. é simples: todo trem há de ser esperado. você esperou por esperar, mas cumpriu seu papel no que os faz trem e passageiro.
é simples: é simples e está claro. é fácil de saber e de entender. é fácil de esperar. é isso.
bridge over troubled water
existe um quarto. existe a parede. existe o outro quarto. talvez por fissuras ou pela fineza da parede. talvez pela característica acústica do material. talvez pela pobreza na qual foi erguida. talvez os anos evaporaram a tinha amarelada. talvez os ratos tenham feito caminhos tortuosos em seu bojo. talvez as traças ou cupins. existe um quarto. existe a parede. existe o outro quarto. talvez já tenham pegado o mesmo elevador. talvez o lixo já tenha ficado junto na coleta. talvez as baratas que os frequentam sejam as mesmas. talvez no corredor. talvez na portaria. talvez no ponto de ônibus. existe o quarto. ele sabe que existe a parede. existe o outro quarto. ela olhava para a parede agora. o que une e o que separa. dividem algo em comum. a parede. não sabem nada um do outro. a parede. talvez por fissuras sinta o cheiro. ou pela fineza da parede escute o ronco. talvez pela característica acústica do material a voz não seja a mesma. talvez pela pobreza na qual foi erguida saibam que um empurrão e adeus. talvez os anos tenham evaporado a tinha amarela e eles tenham respirado vapores tóxicos por todo esse tempo. ou os ratos que fazem caminhos tortuosos os desdenham igualmente pela inabilidade de acabar com eles. talvez as traças e os cupins. talvez um quarto, talvez uma parede. talvez um outro quarto. dividem algo em comum que os separa. são unidos pelo que os isola. talvez um quarto. talvez uma parede. talvez um outro quarto.
domingo, outubro 07, 2012
מסתורין
existe o caminho e existe o mistério. um e outro mesma coisa, coisa outra, coisa só. mas existe o caminho e existe o mistério. um leva ou é levado. traça-se sobre a palma. sobre o caderno. sobre o pergaminho. sobre o mapa. o outro surge e confunde. surge e explica. surge. e é.
andar é escrever história e é mover-se nela. tudo está sendo feito, mas já foi escrito muito antes. e ainda não terminou. existe o mistério. existe o caminho. existe o agora, e nele ando e espero. ciente de que andando escrevo e vivo. vivendo, eu ando e percebo.
andar é escrever história e é mover-se nela. tudo está sendo feito, mas já foi escrito muito antes. e ainda não terminou. existe o mistério. existe o caminho. existe o agora, e nele ando e espero. ciente de que andando escrevo e vivo. vivendo, eu ando e percebo.
quarta-feira, agosto 22, 2012
chama e fluido
hoje eu vou contar uma história
andando pela rua vi algo escrito no chão que me chamou a atenção, fui pensando e montando um texto mentalmente até que notei que o melhor que eu fazia era sentar e botar num papel antes de esquecer. mal abro o caderno, um morador de rua me pede um cigarro. eu perguntei o nome dele e ele se assustou muito por alguém querer saber disso. alexandre hélio. ele me perguntou o que eu tava fazendo e eu disse que iria escrever. "poesia?". e eu disse que não, e ele disse que escrevia poesias. que adorava. eu pedi pra ele fazer uma poesia pra mim. ele sentou do meu lado, abriu o maior sorriso do mundo. deu um trago no cigarro, olhou pra ele e então e ele fez essa poesia na hora:
chama e fluido (alexandre hélio)
acende inerte antes de completar vinte
vinte cogitada, vinte mascotada
vinte mais camadas
vinte ver-te você
entre lábios, vinte
indicador
polegar
casal vinte
eu vinte e você
perguntei qual era a do vinte, e ele "pô, vinte cigarros numa carteira, né?" sem tirar o olho do seu cigarro aceso.
carioca, dorme em frente ao Club Homs, na Avenida Paulista. 35 anos, alguns deles na rua. muito articulado, educado, calmo, falava muito bem. perguntei como ele tinha parado na rua, ele disse que tinha sido por causa de um amor. Amanda. estudou só o ginásio. o resto, aprendeu em bibliotecas. adora a Monteiro Lobato, na República. acessa a internet de lá, escreve e lê. me falou um monte de coisas, que pararam no meu caderno. passei uma hora conversando com ele, e aqui tem algumas das frases que eu anotei, o mais fiel que pude.
"absorver do amor é um equilíbrio que move sua auto-estima diante daquilo que você exerce filosoficamente diante da sociedade"
"nem luxo, nem lixo. todo mundo precisa gozar... defecar... respirar" e virou pra mim e me ordenou: "respire!"
"se você tem status ou dinheiro, todo mundo quer te bajular. o bajular dá tédio em qualquer ser humano. bajular é fácil, difícil é cuidar. porque essas pessoas querem sempre pesar o que eu estou valendo ao invés de ver o que eu sou enquanto existência"
me disse que o melhor momento da vida dele tinha sido "saber quem era meu pai e minha mãe de verdade" e que o pior foi que "ganhei 300 milhões de reais, e me roubaram. ganhei um concurso, mil barras de ouro, e me roubaram. mas o pior de todos foi achar a mulher que eu amo e terem me casado com ela".
concluiu que era lindo "esbarrar numa pessoa e ver que ela tem brilho".
depois de uma hora se levantou, me agradeceu pela conversa. agradeci ele por ter me achado.
domingo, agosto 19, 2012
Ida
Sonho tem tamanho e coube em três malas. Deixou um armário e um coração vazios. Desceu de escada, toc toc toc cada mala levando um mundo. As malas voltam, e um dia outros sonhos também. Mas o toc toc toc ainda ecoa pelo corredor, pelo quarto, em cada espaço vazio.
terça-feira, agosto 14, 2012
um bonde
um bonde. que modo mais anacrônico de morrer: atropelado por um bonde. em pleno século xxi. que desgraça. isso é a maior vergonha. todos os jornais vão estampar isso. enfim.
pois eu me vi morrendo. estrebuchando. agonizante. as rodas do bonde tinham decepado um braço e passado por cima do tronco deixando um vinco e um talho e me arrastado pelos trilhos num rastro de tripas e sei lá o que mais. impossível de se sobreviver. uma pena. tinha muito sangue e tenho que admitir, é muito estranho se ver morrendo. e eu estava lá morrendo. chiando e grunhindo alguma canção de morte qualquer, não sei. mas mais estranho ainda é ter notado que eu não era meu espírito ou minha alma que via o corpo morrer. procurei primeiro minha carteira, estava comigo. minhas chaves, no bolso direito. o celular no esquerdo. o braço - ainda bem - ainda colado no corpo. e os vincos só na camisa mal passada que ia trabalhar. mas peraí. eu não era uma alma, e ainda assim me via morto. e o mais estranho, ninguém deixava de me ver. mas pela naturalidade com que conversavam, com certeza não via aquela cena grotesca de mim mesmo, em duplo, esmagado, trucidado, desmembrado, eviscerado. eu estava sólido, e sentia que estava. toquei o rosto, ainda tinha a cicatriz na testa daquele acidente. toquei o poste. cheque. o muro. cheque. se não estivesse sólido, como estaria agora com a caneta escrevendo isso no papel? estou sólido. sou gente. estou vivo. mas estou morto. morri hoje à tarde, debaixo de um maldito bonde.
e eu vi o morto e olhei nos olhos dele e eram os mesmos que o meu. e guardavam os mesmos humores. e tinha a mesma cor. e olhei a pele e era mais pálida, mas guardava a mesma cicatriz daquele acidente. e olhava as roupas, em retalhos, mas recompostas fariam as minhas vestes de agora. eu estava vivo e me olhei morto. um morto.
mas não adianta muito falar pra alguém, né? louco. pirou. surtou. essas coisas. não me deixo cair nessa mesma armadilha. já caí algumas vezes, quem nunca? sofri com minha morte em silêncio. e fiz meu luto ali do lado, num café. sorvi o espresso como quem faz um ritual. mas na verdade, era apenas eu bebendo mesmo. do mesmo jeito. olhei a agenda do celular. as mesmas pessoas. pensei em ver um filme, eram os mesmos em cartaz. do nada parecia que tudo era a mesma coisa, mas não. não era. tudo tinha mudado. mas bem, louco, pirou, surtou. essas coisas que se falam. não podia deixar transparecer.
mas peraí, eu estou vivo e acabo de morrer. isso significa muita coisa. significa que tenho uma nova vida pela frente. que eu posso recomeçar do zero. que nada que me amarrava à vida anterior servia. estava livre para me prender em todas as novas prisões que quisesse. tudo tinha um sentido, por menos que eu entendesse. eu estava vivo e acabara de morrer. isso significava muita coisa e eu precisava apreender isso com tudo que pudesse.
até que me ligaram do trabalho. estava atrasado.
mas não adianta muito falar pra alguém, né? louco. pirou. surtou. essas coisas. não me deixo cair nessa mesma armadilha. já caí algumas vezes, quem nunca? sofri com minha morte em silêncio. e fiz meu luto ali do lado, num café. sorvi o espresso como quem faz um ritual. mas na verdade, era apenas eu bebendo mesmo. do mesmo jeito. olhei a agenda do celular. as mesmas pessoas. pensei em ver um filme, eram os mesmos em cartaz. do nada parecia que tudo era a mesma coisa, mas não. não era. tudo tinha mudado. mas bem, louco, pirou, surtou. essas coisas que se falam. não podia deixar transparecer.
mas peraí, eu estou vivo e acabo de morrer. isso significa muita coisa. significa que tenho uma nova vida pela frente. que eu posso recomeçar do zero. que nada que me amarrava à vida anterior servia. estava livre para me prender em todas as novas prisões que quisesse. tudo tinha um sentido, por menos que eu entendesse. eu estava vivo e acabara de morrer. isso significava muita coisa e eu precisava apreender isso com tudo que pudesse.
até que me ligaram do trabalho. estava atrasado.
lepra
primeiro veio a doença ou primeiro eu vim. nunca soube. mas quando a doença veio, eu aceitei. faltava algo em minha vida, e ela me deu alguma coisa. algo a que me ligar. algo sagrado. é uma doença bíblica. ancestral. me conectou com o mundo, eu que estive por tanto tempo sem saber onde estava.
primeiro levou-me as unhas. uma por uma. no banho. lavando as mãos. procurando as chaves. mas não me importei muito. a doença tinha me tirado os motivos pra que eu precisasse de unhas. nada mais coçava. nada mais doia aquela dorzinha fina que parece que some quando coçamos. foram cinco. foram dez. foram vinte.
primeiro levou-me os cabelos. fio a fio. no banho. penteando-me. deixando o vento bater em meu rosto. mas não me importei muito. a doença tinha me mostrado uma coisa: eu estava com ela, e ela comigo. as necessidades de cabelo enquanto ferramenta de corte não mais importavam. as necessidades de cabelo enquanto proteção ao frio não mais importavam. não precisava de flerte. tinha cobertas e aquecedores. a doença não me deixava sentir frio ou solidão.
primeiro levou-me os dedos. dos pés. nem sabia que não eram dedos. artelhos. e de que importa o nome? não me importei. nem sabia que precisava até notar o quão difícil era caminhar. cada tropeço, cada queda. mas não me importei muito. tinha aprendido já. e a doença tinha me tirado os motivos de desistir a cada tropeço, afinal, o que é uma queda. ela me apoiava. e não no sentido literal. ainda caía, ainda quebrava, ainda machucava. mas eu tinha ela, ao menos. sagrada. bíblica.
primeiro levou-me os dedos. das mãos. apertando uma mão, foi um. trocando um canal, foi outro. escrevendo para amigos, mais três. folheando uma página, mais um. enfim, um a um. dez. mas não me importei. não precisava de mãos para apertar, ou assim pensava. televisão nunca foi algo bom, sempre acreditei. os amigos entendem, ou não se importam. pra que amigos. livros sempre ocuparam espaço. acumularam poeira. enchiam-se de memórias. ocupava a minha cabeça. a doença tinha me levado os dedos mas tinha deixado os braços.
primeiro levou-me os braços, as pernas. não me importei. não tinha mais dedos. não tinha mais artelhos. já não caia. já não abraçava. não lia livros. a doença me fez entender. tudo supérfluo.
primeiro levou-me as vísceras. nada importa. não como. não respiro. não preciso.
no final, a doença e eu não sabiamos como nos entender. onde estava meu corpo que a doença levara, não sei. não sei se era meu também, a doença e eu não tinhamos mais diferenças. e o que era meu mesmo? a doença havia levado uma parte enorme de mim. quase tudo. mas será que aquilo um dia foi meu? não me importei. ou fingi que não. mas a doença já tinha levado meus olhos, não tinha mais como chorar. a doença já tinha levado meus dentes, um a um, não tinha como a ameaçar. a doença apodreceu minha lingua, que caira, não precisava mais falar. nos meus lábios, me deu um último beijo, antes de levar-los embora. eu.
mas também, eu que fui atrás.
quinta-feira, agosto 09, 2012
ch-ch-ch-changes
se assumimos o risco e concordamos que tudo é circular, não haverá quebra nenhuma. se tudo muda e tudo continua o mesmo, não haverá quebra nenhuma. o dia é um giro. o ano é um giro. e a vida deve ser por aí também. não há quebra nenhuma. se tudo muda, nada continua o mesmo, ou nada muda, tudo continua o mesmo, isso é brincadeirinha de semântica, e de volta em volta, não me diz muita coisa. não haverá quebra nenhuma, mas eu estou pensando. meus passos pra frente só são uma reta se pensarmos pequeno, estamos todos caminhando numa bola.
terça-feira, agosto 07, 2012
shackleton
o quarto é um mar calmo onde repousa o conhecido. mesmo do escuro, nada se sobressai à calmaria. o vento não entra. não traz o gelo que castiga o que há lá fora. o som é o o som da voz dos meus dedos, batucando cada uma dessas palavras desnecessárias. o quarto é um mar calmo onde nada mais repousa.
a cama é um bote. é um barco. é um transatlântico. vazio. o quarto é ainda o mesmo mar tranquilo onde repousa o silêncio. onde repousa a falta. e a cama, enorme, está parada no meio desse oceano. do mar tenebroso. onde monstros com certeza aguardam, em repouso.
a cama é um mar revolto onde repousa a falta. o quarto é a noite onde a calma aguarda. a cama aguarda também, enorme. vazia. em silêncio. em repouso.
segunda-feira, agosto 06, 2012
martha's hula hoop
tudo começou no mar. e da água e do sal que o forma viemos todos. tudo começou num choro, também de água e sal. e de onde venho, o choro não se faz diferente.
a história também começou de um choro. um mês antes do tempo necessário, nasceu e chorou pela primeira vez. a mãe em uma maca. num corredor. tentando segurar o primeiro filho que insistia em nascer, para dar tempo ao médico chegar. mas queria nascer e "não adianta, ele já está saindo" e saiu. e chorou.
quatorze anos depois chorou porque o amor da curta vida dele estava nos braços de outro. havia depositado toda sorte de pensamentos e desejos infantis naquele amor e no momento ela beijava outro. a vida aconteceu naquele momento, e no caminho para casa chorou.
nove anos depois ouviu que não era amado. depois de anos e anos de promessas de eternidade, quando o eterno vale muito menos do que parece e é moeda fácil de quem conhece muito pouco o tempo. tinha conhecido muito de uma vida e chorou.
onze anos antes chorou madrugadas inteiras quando o mundo que ele conhecia parecia ruir como ruia o casamento dos pais. não dormiu vários dias e um dia o pai saiu de casa e chorou.
treze anos depois chorou. vinte anos antes também. vinte e cinco anos depois chorou mais uma vez. segurou tantas vezes e tantas vezes mais largou uma após uma as lágrimas que guardou. e chorou.
e essa é uma parte da história, que começou com um choro e noutro chegou. e essa parte da história é sua. e tantas outras também. tome conta da história e da parte do homem que com você foi. foi no choro e no sorriso. foi na lembrança. se alguma coisa tem um sentido, o sentido é circular e nunca termina. qualquer ponto nunca é fim, mas começo. hoje começou uma nova história, e como toda boa história, começou num choro.
todo dia um ciclo de fecha porque tudo começa no mar. e da água e do sal e do choro tudo vai e ao mar volta. e todo momento é um momento no ciclo. tudo começa num choro mas hoje não terminou nele. porque nada termina. hoje choramos. amanhã o mar leva nossas lágrimas.
toma conta de cada uma, mas chore sempre que precisar ter algo pra começar.
sábado, fevereiro 25, 2012
tudo
como pés tão pequenos sustentam esse mundo? de passos indecisos, indefesos, com cada pisada que parece tremer o chão, mas sem o peso que precise. abre os braços, quer voar, se equilibra com o que dá. como podem mãos tão pequenas agarrar tudo que existe? cada palavra é um mundo. pá. má. vó. á. au-au. ideogramas sonoros carregando todo o significado do mundo. e o intérprete navega nesse mar de sentido, perdido, ou achado. como podem olhos tão pequenos absorver toda luz do mundo? manhã acesa, chega e cega, e acorda os pássaros e as pequenas pessoas, que acordam as grandes, que acordam o mundo. como pode de tamanho tão pequeno ser tudo? quem é a pessoa que nem sabe o próprio nome e já é dona de si e de nós todos? por que perguntar?
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