segunda-feira, agosto 11, 2003

Hoje de noite eu chupei laranjas. Tão bonitas, amarelas e doces, com o gosto da minha infância.

Quando eu ia pro interior eu chupava muitas laranjas. Eu tenho minha casa lá, que não é minha mesmo, mas de minha tia.
Minha tia era grande e forte. Tia Nane. E eu queria ser forte como ela quando pequeno. "coma tudo pra ser forte que nem tia Nane!" minha mãe já dizia. Minha tia Nane era casada com meu tio Zé. Ele também era forte, muito forte. Um homem do interior, como era minha tia Nane uma mulher do interior, com tudo de melhor que poderia haver nas pessoas de interior.

Meu tio Zé tinha fazendas, sítios, chácaras e coisas que as pessoas de interior as vezes tem. Tudo muito simples como ele. Uma casinha de tijolinhos e argamassa, sem laje. Um curral. Bastante verde e bicho e espaço pro menino de cidade correr e brincar. E ele tinha laranjais, como as pessoas do interior daqui têm aos montes. Montes e montes de laranjais. O meu tio Zé vendia laranjas e dava laranjas (e como era sempre quando íamos no interior, voltávamos com um saco enorme de laranjas no fundo do carro) e guardava laranjas em casa porque ele adorava laranjas.

Nós tínhamos esse monte de laranjas sempre em Lagarto (o interior) e fazíamos de tudo. Tomávamos o suco fresco que minha tia fazia de manhã super gelado e deliciosamente doce. Montávamos uma banquinha na porta de casa, com minhas primas, e brincávamos de vendinha (baldes de laranja R$0,50 o balde, mas não leva o balde, viu?) e víamos o dinheiro chegando com satisfação pra gastar tudinho na banca de doces de Sô Tônho. E ainda chupávamos laranjas.

Às vezes chupávamos laranjas a tarde toda. As tardes eram quentes na garagem de cimento batido vermelho (que manchava o pé!) e ficávamos sentados conversando e chupando laranjas. Minha tia chupava de pé. Fazia barulho como todo mundo fazia (chup! slurp! chup!) e arrotava bem altão! Minha mãe dizia que era feio e reprimia minha tia, mas ela ria bem largo. O sorriso dela era delicioso como as laranjas, sorriso de boca grande e alto alto alto...Contagiante. Minha tia ria e arrotava alto. E a gente arrotava também. Pirralhinhos e o menino da cidade sentados no sofá de mola, arrotando e chupando laranjas. Ela ensinava a gente a chupar sem se melar (eu me melava todo!) e a gente não aprendia, mas ficava chupando laranjas o dia inteiro e rindo com (e de) minha tia. Tudo aquilo com o cheiro de laranja, guardadas nos sacos enormes que meu tio Zé trazia do sítio.

Meu tio Zé tinha uma faca daquelas dobráveis e descascava laranjas calado. Ele usava um chapéu como os caubóis e botas. Ele não arrotava, mas ria bastante também. Minha tia usava uma faca da cozinha de cabo branco. A faca já tinha sido amolada tanto que parecia uma meia lua. Eu chamava de "faca de açougueiro" porque parecia com uma e também já tinha cortado um pedaço do dedo de quase todo mundo da casa. Os dois sabiam como descascar laranjas. Como eu não sabia eu sempre pedia pra eles descascar pra mim. Eu ficava sentado sorriso nos dentes esperando. "Raphael, pegue sua laranja". Eu ia sorriso nos dentes pegar. Minha tia conseguia descascar certinho, deixava a laranja branquinha. Ela não feria a laranja como nós dizíamos. Eu feria bastante, rasgava, amputava largos pedaços de laranja.

Às vezes a gente tava vendo TV e minha tia chegava na sala, a camisa amarrada em cima da barriga, de chinelo e bermuda com um prato de laranjas perfeitas, cortadas e descascadas e a gente ia chupar laranjas no quintal. Minha tia rindo e arrotando. Eu ria e arrotava também. O quintal tinha árvores. Cinco. E tinha areia! E galinhas e os gatos que as atacavam. E o galo que "enrabava" a gente (quando enrabar era correr atrás da gente). Tinha a goiabeira que a gente subia pra conversar. Tinha a sala de tranqueiras que as galinhas botavam ovos (ovos azuis, vocês já viram!?) tinha a porta pra garagem que a gente se escondia e ia chupar laranjas. No começo tinha o curral abandonado, que virou casa em construção e nós brincávamos...
Agora tem um monte de lembranças.

Da garagem que virou vídeo-locadora. Do quintal que virou cozinha. Das laranjas que viraram história.

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