quinta-feira, janeiro 15, 2004

capítulo 3

e nesse quarto sobraram apenas eu e seu retrato que descansa desprotegido na mesa. me sento frente a frente com a imagem que sobrou de você e apenas 3 coisas desviam o meu olhar do seu: um copo sujo e meio vazio, uma garrafa de destilado e uma luminária que reluz fraca e amarela sobre os outros objetos.

e eu bem que queria que aqui fosse um hotel na cidade, e que pelo menos a garrafa que translucida vibra ao meu lado fosse um uísque envelhecido em tonéis de carvalho. nem pediria um copo de cristal...mas não, estou no que sobrou do que um dia foi um lar. com uma garrafa de cachaça das mais baratas e venenosas e o único copo que sobrou inteiro depois de tanta fúria desmedida. não é vegas e não vou beber até a morte, porque morrer já é mais do que eu tenho dignidade de pedir. esquecer é muito, eu penso em apenas apagar. e acordar coberto em meu vômito, despido de minha honra e de minha hombridade, infeliz ainda, mas com menos uma noite para lembrar.

porque não só é difícil ter de passar os dias em desconforto com os outros, é mais complicado ainda passar os dias desconfortável comigo mesmo, com o meu eu que de dentro de mim se apequena e se deixa diluir em álcool...o meu eu que não quero aqui, quero ali do meu lado, sentado no canto, rindo ou chorando pelo que me torno quando bebo, porque já não sou mais o mesmo quando ponho álcool na boca, me torno outro: menor, mais triste mas pelo menos sou outro. e eu esqueço dele tão fácil quanto ele esquece da vida.

por quanto tempo esse retrato ainda manterá o sorriso no rosto? e como pode você, logo você, manter o sorriso enquanto me afogo em copos cada vez mais rapidamente esvaziados? quando o queimar da bebida já não afeta mais a minha garganta, e que beber é um simples ato reflexo: se o copo está aqui ao alcance dos olhos, devo beber. e então depois de um tempo você é uma mancha que flutua, mesmo eu sabendo que está parada. e o mundo é uma mancha que titubeia em seu eixo, mesmo eu sabendo que ele é harmonia. e eu oscilo em meu canto estático e paralítico.

porque eu estou estático e paralítico. não preso a uma cama ou uma cadeira de rodas, mas preso a isso que as pessoas chamam de vida. não, a vida não continua como você disse. a vida pára uma hora, e a pior hora dela parar é antes de sua morte. porque então você se torna casca, se torna invólucro. e embalagens só existem para conter algo, caso não, é uma coisa inútil. como eu, que não sirvo nem para ser alguém mais forte que uma garrafa de cachaça. que não sirvo nem para ser o primeiro a ver seu sorriso pela manhã. que não sirvo nem como alguém que é alguém para outra pessoa.

e eu relembro os dias em que eu sabia quem era. cada vez menos eles contam no total de dias que eu vivi, mas aqueles dias, ah, aqueles dias...eu sorria e podia ter seus cabelos dourados entre meus dedos, seus olhos cinza para me sugar, sua virilha, suas pernas, seu corpo para me afogar...eu tinha alguém, e melhor ainda, eu tinha você. e hoje o que sobrou? o seu retrato, porque nem a mim eu tenho mais. e é por isso que estou aqui agora, com o intuito de passar mais uma noite em branco, apagado das memórias que doem, sem precisar relembrar dos dias de outrora. o primeiro copo é para aquecer o meu corpo frio e seco; o segundo para afrouxar minhas pernas, raízes que me plantam nesse mundo; o terceiro para anuviar e nublar esse quarto tão vívido e cheio de escuro; o quarto para encher de nuvens meus olhos e esvaziar de mente a minha mente.

e até que eu sinta aquele pulsar quente, amargo e ácido do vômito explodindo de dentro de mim, continuarei a beber. até que eu desfaleça, empapado em suor e no nojo que me tornei, como uma fruta podre que cai, no chão do meu quarto. até que eu sinta que o dia acabou para mim, e que eu já estou ali fora de mim, sentado no canto. até eu deixar de ser.

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