sábado, março 13, 2004

(eu nem sei porque eu ainda ponho meus contos aqui. ninguém lê. mas que se dane. esse é meu blog. o texto será/seria uma contribuição futura/inexistente pro "devaneios de eulália", o zine. feito durante aula de psicologia da linguagem, que fino.)

e eu que estava ali sentado, olhava eulália.

reduzindo o escopo de sua atenção àquele livro. de longe era uma paisagem estática. uma menina na grama e seu livro. mas olhando bem – e olhando como eu olhava – tinha a boca mastigando os lábios; tinha o lápis dançando em seus dedos ou tamborilando em sua perna; tinha o olhar varrendo as páginas vagarosa e concentrada – o que será que as páginas diziam?

não é o caso de estar apaixonado, mas era um quase encantamento hipnótico. dela só sabia o nome, e algumas peças de roupa. o tênis azul. a mochila vermelha e surrada. a presilha de borboletas. e nem digo que dela já procurei saber alguma coisa, era a eulália que eu montava na cabeça que eu gostava. quem sabe, talvez a verdadeira não tivesse um cachorro chamado dante. talvez a verdadeira não soubesse falar francês e nem soubesse dizer “eu te amo” em sete diferentes línguas. talvez nem fosse eulália o seu verdadeiro nome e talvez nem fosse ela alguém real, mas apenas uma miragem no gramado naqueles dias quentes.

ao mesmo tempo que a idéia de dizer um “oi” era extasiante, quebrar aquela imagem era um risco que eu não me propunha correr, pois dos cacos das minhas coisas quebradas e esfaceladas eu destituía do poder a dor e guardava meus olhos pra eulália. para a menina que, quem sabe, também compartilhava comigo alguns sonhos e todo o desolar de ser sozinho sentado na grama.

é quase um maço de cigarros que evaporo enquanto devaneio sobre eulália - será que ela fuma? – e enquanto o cigarro corrói o meu corpo eu vejo as formas que saem enevoantes. molduras evanescentes em torno dela. e é triste ser sozinho, mas eu colho felicidade apenas em pensar que talvez eu a note quando ninguém nota. como se ela fosse um tesouro secreto que eu não tenho, mas sei muito bem onde está enterrado. e assim é suportável passar os dias. é suportável esperar e esperar o dia de ir fumar no parque. é suportável aceitar que talvez eu nunca diga aquele “oi”, mas tendo ela em vista, minha progressiva autodestruição é até mesmo aceitável.

as páginas são passadas, eu trago o veneno de minha rotina e o livro que eulália lê vai acabando. visualmente mostrando que o tempo que eu passei apenas observando foi longo. o peso das palavras se deslocando da direita pra esquerda. talvez a última página seja virada aqui em minha frente e eu a veja por um segundo sorrir ou chorar. mas talvez tudo acabe num ponto de ônibus, na fila do banco, durante as aulas, quem sabe onde mais ela leva aquele livro?

mas aspergindo essa fumaça pesada eu sinto que de nada adianta eu me ater a ela. de nada adianta nada. mas ainda assim eu sei, que toda vez que expirar toda a toxicidade desse meu cigarro, eu verei nos véus brancos ascendentes a imagem etérea de eulália...

raphael, 11/03/04

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