terça-feira, maio 18, 2004

O GRANDE TÉDIO

capítulo II

carla apoiou os cotovelos no parapeito da janela e olhou para o chão distante. pensou nas duas últimas semanas e suspirou. havia dito tchau mãezinha, tchau fernanda e tchau ana e decidido deixar mãe e irmãs para morar naquele apartamento. não era que se sentia desconfortável na casa anterior, mas já estava claro na cabeça dela que as paredes que cercavam seu quarto e a sala da tv já não cabiam seja lá o que era que ela tinha se tornado. tá certo que era um sentimento vago demais, mas por muito menos ela já havia tomado decisões tão ou mais importantes.

se ela sentia que tinha o controle de tudo na vida dela, desde as finanças até a quantidade de tomates em seu refrigerador, ela percebia o quão engraçada eram essas coisas sem graça alguma. é verdade, carla talvez fosse meio louca e risse por coisas sem graça alguma, mas ela achava mesmo que fosse risível descobrir a quantidade de coisas escondidas no funcionamento de um lar que ela até então não percebera duas semanas antes. só que talvez ela ainda não estivesse preparada para o que viria depois de largar um lar por outro que talvez se tornasse ainda: o silêncio.

era um silêncio perturbador. e nada que ela fizesse tirava aquele silêncio do apartamento, nem ligar o som na maior altura, nem passar horas pendurada no telefone com pessoas mil, nem festas - e eram muitas. era um silêncio que incomodava no fundo da alma, que tocava com unhas cortantes os seus ouvidos e a fazia sentir que talvez a graça da manutenção caseira e a vontade de rir sem ter porque e/ou andar de calcinhas pela casa não fossem tão compensadoras assim.

e do silêncio ela se tornou cativa, sendo arrastada cada vez mais a ficar calada olhando para um canto, para a tv, ou para o prato onde a comida esfriava. se não tivesse um emprego que a martirizasse por quase 8 horas diárias, talvez enlouquecesse logo, logo.

ela pensou no que tinha feito pra transformar o apartamento numa coisa mais plausível e pensou que tudo as vezes parece ser tão em vão. e quando ela apoiou os cotovelos no parapeito da janela parecia que nunca estivera ali, olhava para o chão que se deitava a alguns metros dela e percebia cada marca deixada pelas coisas mundanas na rua e nas casas embaixo. via a casa da esquina que da laje estendiam-se roupas e mais roupas coloridas, via o menino sentado na calçada brincando com pedrinhas, via o vai-e-vem das pessoas que se dirigiam para algum lugar qualquer que ela desconhecia. ah droga, as coisas são sempre a mesma merda, ela talvez tenha pensado e então se inclinou pra tentar ver mais de perto uma coisa qualquer que chamou atenção dos seus olhos e então...

o telefone tocou e ela foi atender quase feliz por ter sido salva daquele momento. segundos depois de virar o olhar, perdeu de ver de camarote o atropelamento do menino que brincava com pedrinhas.

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