Li isso e me lembrei dele.
Para Gabrig:
"Empunhando a faca-estrela de minha avó, eu imprimia pequenos cortes superficiais no caule do pinhão-roxo mais entroncado que logo pegava a chorar as lágrimas leitosas que eu aparava pacientemente, os pinguinhos e os pingões, na minha coité castanha. Nesse líquido embaciado, embebia uma das pontas do longo e verde canudo de mamoeiro, embicava-o bem para cima e soprava da outra extremidade. Ai então, sob o fundo das nuvens que viajavam risonhas, deflagrava-se o milagre! Da pequena gota turbada, hesitante, se balançando meio desequilibrada no oco do tubo vegetal, despencava-se a prodigiosa aparição: uma copiosa revoada de esferas de muitas cores misturadas de todos os tamanhos, bolinhas e bolonas, lépidas e viageiras, translúcidas e camaleônicas, a brincarem muito luminosas em cangapés de adeuses. Ah! Quem me dera agora mesmo me desatar da frágil condição de vivente para me desdobrar descarregado das amarguras e sem deixar rastros como elas...nascer repentinamente de um reles assopro na beirada de um canudo qualquer, também como elas, para vagar nestes ares vazios à mercê da mais imprevisível pancada de vento, lesando lá por cima como quem já não regula, à toa...à toa... e depois de assim exaurir ao léu todas as energias, não importa até onde nem quando, enfim implodir silenciosamente sem ser notado, ainda uma vez como elas...sem gritos de angústia nem gestos dramáticos, sem derramar sangue nem fezes ? e sobretudo, isso sim! ? sem padecer do ridículo no meio dos favores prestados a contragosto e dos cuidadinhos alheios que sabem a caridade. Quem me dera me despojar desta condição de vivente sem nenhum alarde, assim como um estranho ente que de súbito, governado por artes e magias, se desencanta do modo mais silente, mesmo sem o sofrimento refreado e invisível que acabou com minha avó. Simplesmente desmanchar-me na inaparência dos redondos volumezinhos furta-cores que me encadeavam num arco-íris de luzes e desapareciam borboleteando na mais cristalina leveza, na mais transparente candura, no mais sigiloso anonimato, sovertidos num bosquejo de dulcíssimo frêmito insofrido."
De Francisco J. C. Dantas, em Coivara da Memória, página 33.
Um dia eu ainda aprendo a fazer metáforas e textos poéticos como ele.
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