domingo, outubro 05, 2003

esse é mais um texto da série "textos que escrevo quando não presto atenção à aula". são pequenas coisas que escrevo em meu caderno quando o tédio inquietante das aulas me leva a um lampejo criativo qualquer. bom ou ruim. às vezes são influenciados por uma palavra qualquer que o professor profere e me leva a um estalo, ou apenas são coisas pelas quais passo no momento. o texto a seguir se deve a um momente desse ano em que minha vista andava meio nublada (mais que o normal) e eu, na minha paranóia infantil e idiotica, achava que era alguma doença incurável e que por fim me levaria a cegueira. era apenas a necessidade de óculos novos. segue o texto:


Sobre a cegueira


Recentemente adquiri mais um novo medo a minha já extensa coleção de medos e inseguranças cotidianas: o meu maior medo hoje é de ficar cego. Tá isso é um medo comum a todos com olhos, mas fora os já doentes e aqueles que não olham pra onde enxergam todos apenas nutrem esse medo como todos os outros medos que jazem tranqüilos (mas imprevisíveis) nos recônditos mais escondidinhos lá no fundo da alma, é tal qual o medo de animais selvagens e peçonhentos, de cavernas de ares venenosos, e de astros conspirando contra seus pequenos admiradores.

Meu medo de ficar cego é tão medo quanto o medo qualquer de qualquer um. Mas ainda assim é mais medo que o dos outros porque é meu e eu tenho os meus motivos meus e só meus que me fazem crer que eu realmente possa ficar cego. Nada ainda quantificado, diagnosticado e banalizado por um profissional respeitado e competente provido de lentes e mais lentes e de gotas e mais gotas (gotas essas que só da parca memória já me causam mais agonias da pura possibilidade do ato de “quase” ficar cego, ou do processo da cegueira em si).

Meu medo de ficar cego é tão forte e tão arraigado que até cercado de animais selvagens e peçonhentos, encurralado contra cavernas venenosas e com o céu a pipocar e a rasgar-se em cores e formas, eu tenho mais medo ainda de nessa exata hora que as metafísicas conspiram contra um pequeno e assustado eu, eu fique cego e mais perdido que o mais desafortunado dos náufragos.

E talvez esse meu medo da cegueira seja apenas um reflexo meio sujo, meio triste, meio exagerado de minha simples fraqueza. Pelo menos de uma delas. Acho que divido essa fraqueza com os milhares como eu, os que usam óculos. Como se usar óculos (por uma necessidade infeliz da natureza) nos sindicalizassem todos e nos tornasse uma grande e infeliz família de quatro-olhos, padronizados e com características em como. Uma subespécie humana.

A fraqueza de usar óculos já aumenta meu medo na mais flagrante característica nossa: já somos, per se, quase cegos. Ou pelo menos com menos visão do que belos e felizes não usuários de óculos. Prefiro não entender os distúrbios de visão como “apenas uma distorção da visão comum” mas prefiro ainda classificar-nos como cegos privilegiados, que apenas vislumbram o mundo das luzes através dos borrões e manchas móveis, disformes e não nítidas. O meu copo está meio vazio.

Por já ser um cego privilegiado, mas ainda assim um cego em potencial, eu fujo da cegueira como se nem mais respirar importasse, como um rico que foge da pobreza, um upstart deficiente físico que pesadela em se tornar um mendigo aleijado. Mas mesmo assim, como um Fausto desgraçado por deus (e não pelo tinhoso) eu sinto que o derradeiro momento como o melhor dos cegos há de chegar. Tão retumbante como a queda de Roma (que de tão devagar, antes de se notar já tinha caído).

Porque se os olhos são o espelho da alma, eu que já nem tenho uma própria ainda corro o risco de perder a capacidade de refletir a dos que macaqueio a meu modo. E meu olhar vago para o infinito se voltará agora para o nada. E as formas que aparecem no fundo das minhas retinas fugirão como os ciscos que saem pelo canto dos meus olhos. E um olhar profundo qualquer não desvendará nada alem do que a inatividade do fundo do meu globo ocular.

Não que os cegos são os mais desgraçados dos seres que jamais pisaram nessa terra. A felicidade deles independe de cada palavra antes dita por mim. E eles transitam livremente pelo mundo das minhas coisas vistas (ou quase vistas) com dificuldade, mas cheios de uma coragem sem igual. Uma coragem que eu não tenho. A coragem que eu não tenho de confiar nos meus próprios passos num escuro eterno; a coragem que eu não tenho de confiar nas pessoas apenas por suas vozes; a coragem que não tenho de sorrir sem se importar com quão idiota sua cara fique ao sorrir. Não também que ser cego é bom, apenas não tenho coragem suficiente para ser cego. Coragem de visitar o mundo deles tão tranqüilamente como eles transitam pelo meu mundo. Mas eu não sou cego, eu não sei realmente.

O que sei é que sou um fraco vivente que quase vê. Um fraco e ridículo quase homem que se importa se sua roupa combina. Que se importa se seus quilos a mais incomodam os que o vêem. Que se importa em sorrir com um pedaço de alface preso nos dentes. Que se importa com seu sorriso idiota e besta, e prefere não sorrir as vezes. Não ser cego não é para fracos que se importam. Ou talvez seja, como um castigo cruel e sádico do vosso bondoso deus.

Mas se meu fim é ser cego, de que adianta tantas letras e linhas se no fim, serei cego? Talvez porque no fim, antes do último fiapo de luz riscar minhas opacas pupilas já tenha pensando tanto na cegueira que ser cego já será uma parte de mim. E serei cego então.


19/05/2003 – 17:41 h
à luz de lâmpadas amarelas.

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